quinta-feira, 16 de junho de 2011

Capitulo 4-Livro Imagens da Organização

A Caminho da Auto-organização
As organizações vistas como Cérebros – Parte I





Carlos Daniel Romanzini





O capítulo 4 do livro “Imagens da Organização”, de G. MORGAN, apresenta uma metáfora para compreender as organizações através de imagens de funcionamento do cérebro.

Imagens do cérebro

G. MORGAM enfatiza duas imagens que representam suas idéias de organizações:

· Cérebro como um sistema de processamento de informações capazes de aprender a aprender; e

· Cérebro como um sistema holográfico, onde as capacidades requeridas no todo estão embutidas nas partes.

Organizações como cérebros processadores de informações

Todas as organizações dependem do processamento de informações. As organizações são sistemas de informações. São sistemas de comunicação, sendo também sistemas de tomadas de decisão. Sistemas de informações rotinizados são comuns nas organizações mecanicistas e temporários e fluentes nas organizações matriciais e orgânicas. Através das características do processamento das informações podemos compreender as organizações, bem como identificar as diferentes formas organizacionais.

Processamento de informação, tomada de decisões e planejamento organizacional.

Herbert Simon argumentou que devido aos membros de uma organização possuírem habilidades limitadas as organizações nunca podem ser perfeitamente racionais. Herbert Simon sugeriu que as organizações, na melhor das hipóteses, pode chegar somente a limitadas formas de racionalidade devido a:

· As pessoas usualmente têm de agir sobre bases de informações incompletas a respeito de possíveis cursos de ação e suas conseqüências;

· As pessoas são capazes de explorar somente um limitado número de alternativas relativas a qualquer dada decisão; e

· As pessoas são incapazes de dar acurados valores aos resultados.

Herbert Simon sugeriu também que a organização é o produto ou reflexo da capacidade de processamento de informação. Para Herbert Simon novas capacidades levam a novas formas organizacionais.

Cibernética, aprendizagem e aprender a aprender

Para compreendermos melhor utilizaremos uma ciência que tem como foco o estudo da informação, comunicação e controle: a cibernética. A cibernética emergiu do desfio de como cientistas especializados em matemática, teoria da comunicação, engenharia, ciência social e medicina combinassem suas habilidade e descobertas para criar máquinas com a capacidade adaptativa dos organismos.

A cibernética sugere que uma ação humana ocorra através de um processo de eliminação de erro por meio do qual desvios são reduzidos a cada e a todo estágio do processo de tal forma que ao final não reste nenhum erro. Desta forma consegue-se pegar um objeto ao evitar-se não pegá-lo.

Devemos considerar quatro princípios chaves para que a cibernética conduza ao processo de informação capaz de aprender e aprender:

· Os sistema de informação devem ter a capacidade de sentir, monitorar e explorar aspectos significantes de seu ambiente;

· Os sistemas de informação devem também ser capazes de relacionar essa informação com as normas operacionais que guiam o sistema comportamental;

· Os sistema de informação devem ser capazes de detectar desvios significativos dessas normas; e

· Os sistemas de informação devem ser capazes de iniciar ação corretiva quando são detectados discrepâncias.

Se estas quatro condições forem satisfeitas, um processo contínuo de troca de informações é criado entre um sistema e seu ambiente, permitindo ao sistema monitorar mudanças e iniciar respostas apropriadas. Dessa forma, o sistema pode operar de maneira inteligente e auto-reguladora.

Devemos distinguir entre o processo de aprendizagem e o processo de aprender a aprender. Nos sistemas cibernéticos o processo de aprendizagem consiste em detectar e corrigir desvios a partir de normas pré-determinadas, todavia, são incapazes de questionar a propriedade daquilo que estão fazendo. O processo de aprender a aprender possui esta capacidade de questionamento e podem influenciar os padrões que guiam as sua operações.

Podem as organizações aprender e aprender a aprender?

Algumas conclusões podem ser delineadas em quatro princípios:

· Encorajar e valorizar uma abertura e flexibilidade que aceite erros e incertezas como um aspecto inevitável da vida em ambientes complexos e mutáveis. Esse princípio é fundamental para permitir aos membros de uma organização lidar com incertezas de maneira construtiva.

· Reconhecer a importância de exploração de diferentes pontos de vista, encorajando um enfoque de análise e solução de problemas complexos. Esse princípio ajuda a definir meios de enquadrar e reenquadrar assuntos e problemas de tal forma que eles possam ser focalizados de maneira aberta.

· Evitar imposição de estruturas de ação em ambientes organizados onde o importante é Vislumbrar meios em que a inteligência e a direção possam emergir do processo organizacional corrente. Esse princípio se relaciona com a importância da ação dirigida para a investigação.

· Criar estruturas e processos organizacionais que ajudem a implementar os princípios anteriores.

Cérebros e organizações vistos como sistemas holográficos.

O cérebro e a organização são comparados a um sistema holográfico, onde, as capacidades requeridas no todo estão embutidas nas partes. Esta visão permite ao sistema aprender e se auto-organizar-se, bem como manter um sistema completo em funcionamento mesmo quando partes especificas funcionem mal ou sejam removidas.

Como facilitar a auto-organização: princípios de planejamento holográfico.

Para criarmos uma organização do tipo holográfico precisamos:

· Garantir o todo em cada parte;

· Criar conexão e redundância;

· Criar especialização e generalização simultaneamente;

· Crias capacidade de auto-organização.

Para implementarmos a concepção holográfica nas organizações devemos aplicar quatro princípios básicos:

· Princípio da funções redundantes: Compreende em as capacidades relevantes para o funcionamento do todo estão presentes nas partes. Em lugar de partes isoladas que estão sendo adicionadas ao sistema, funções extras são adicionadas a cada uma das partes em operação, de tal forma que cada parte seja capaz de se engajar em um conjunto de funções em lugar de somente desempenhar uma atividade única especializada.

· Princípio da variedade de requisitos: Compreende que todos os elementos de uma organização deveriam corporificar dimensões críticas do ambiente com o qual têm que lidar de tal forma que possam auto-organizar-se para lidar com as solicitações que estejam prontos para enfrentar.

· Princípio da mínima especialização criativa: Compreende especificar nada mais do que o absolutamente necessário para que uma atividade particular ocorra, preservando assim a flexibilidade do sistema.

· Princípio de aprender a aprender: Compreende a habilidade de permanecer aberto às mudanças que estão ocorrendo no ambiente e a habilidade de desafiar hipóteses operacionais de maneira mais fundamental

A organização holográfica na prática

A organização holográfica não é um sonho. Muitas organizações possuem características holográficas em suas estruturas. Algumas empresas de Informática, Publicidade e Marketing são exemplos de organizações holográficas. Algumas células de produção também possuem estas características.

Forças e limitações da metáfora do cérebro

Várias são as forças desta metáfora, (1) as principal e a compreensão da aprendizagem organizacional e às suas capacidades de auto-organização; (2) a compreensão de como a administração estratégica pode ser planejada para facilitar o aprender a aprender; (3) proporcionar meios que, através dos quais se pode ir além da limitada racionalidade que caracteriza muitas organizações no presente; e finalmente (3) é propiciar meios valiosos de pensar sobre como desenvolvimentos na computação e outras tecnologias em microprocessamento podem ser usados para facilitar novos estilos de organização.

Contra estes pontos fortes podemos identificar duas grandes fraquezas: Primeiro, existe um perigo de não se levar em conta importantes conflitos entre os requisitos da aprendizagem e auto-organização, por um lado, e das realidades de poder e controle, por outro. Segundo, é o fato de que, desde que qualquer movimento no sentido da auto-organização deva ser acompanhado por importantes mudanças de atitudes e valores, as realidades do poder podem ser reforçadas pela inércia que vem das suposições e crenças existentes.

A Caminho da Auto-organização
As organizações vistas como Cérebros – Parte II





Será possível organizarmos empresas com o mesmo princípio de funcionamento do cérebro?

Seremos capazes de organizarmos estruturas a partir de uma imagem que ainda desconhecemos como realmente funciona? Ou temos evidências que o cérebro funciona desta maneira?

Onde enquadraremos os sentimentos dentro das organizações? Ou eles não fazem parte do cérebro?

Uma organização poderá ser criativa, independente dos “cérebros” que a compõem?

Existirá diferença entre a organização como cérebro e os “cérebros” que a compõem?







Estas foram as questões que surgiram com a leitura da metáfora do cérebro desenvolvimento deste resumo.

O que venho a ressaltar sobre esta metáfora é que, todos os cérebros, no caso do ser humano, são iguais. Está igualdade é somente física, não intelectual. Esta igualdade entra em descordo com as organizações pois estas são diferentes, física e intelectualmente.

O que podemos entender é que algumas organizações, acredito que num âmbito muito restrito, podem utilizar a metáfora do cérebro como meio de identificar seu funcionamento. Entretanto, não precisamos analisar a organização como um todo, pois acredito que, partes das organizações podem ser identificadas pela metáfora do cérebro.

Entendo mais a organização como uma organismo completo, onde o cérebro poder ser o todo ou apenas uma de suas partes.

(FONTE:http://www.romanzini.com.br/r_works_01/ucs_romanzin_adp037_04r.htm)

sábado, 4 de junho de 2011

"Já não se sonha mais com a flor azul"

José Manuel Silva

Fevereiro de 1997

A citação de Walter Benjamin que dá o título ao presente trabalho servirá de mote na discussão mantida em torno da obra de arte na contemporaneidade. O facto novo que aqui emerge é viver-se numa era que pulverizou por completo os modelos e categorias antigas do Belo, devido à assunção do conceito de "reprodutibilidade técnica" que integra a obra estética na esfera industrial da cultura.
Perante uma época que tem como única certeza o seu fim, é lícito perguntar, à maneira kantiana, "O que podemos esperar?" e "O que devemos fazer a seguir?". As respostas a estas questões serão procuradas, sobretudo, na fecundidade das divergências entre Theodor Adorno e Walter Benjamin, representantes máximos da Escola de Franckfurt.
A busca aqui proposta prende-se com a ideia de que Adorno, ao assumir como princípio da sua crítica a não identidade entre razão e real, leva até ao fim uma dialéctica negativa de onde não se pode escapar, enquanto Benjamin assimila e transforma toda esta negatividade em admiráveis mundos novos, infinitamente geradores de possibilidades e fascínio.
Se aceitarmos a noção de que Hegel foi "o inventor de um triciclo a que chamaram dialéctica"(Melo, 1977: 16), podemos dizer que na teoria adorniana falta uma das rodas ao veículo ó a "síntese" é sempre impossível de alcançar. Para Adorno, a transformação que ocorre no universo da cultura dá-se como um acidente repressivo, e a razão aí só pode erigir-se como negatividade.
Este percurso de crítica do pensamento moderno sobre si próprio é levado por Adorno a formas paroxísticas, que estão patentes no paradoxo da razão que intenta refutar a própria razão. O único sentido da crítica, e que permite à razão não se transformar em anti-razão, é o carácter não conclusivo de uma reflexão dialéctica que não cessa de recolocar em questão os seus próprios resultados. Esta é, aliás, a força do pensamento adorniano.
Ora esta profunda negatividade, a que subjaz, evidentemente, o colapso da razão que se esmaga sobre si própria nas suas investigações, desvanece-se no pensamento de Benjamin, e aquilo que para Adorno era considerado "o retorno à barbárie", constitui neste último mais uma fonte de esperança, mais um caminho que pode vir a ser trilhado pelo homem nas novas formas de arte que estão ao seu dispor.
Como se sabe, a questão estética, desde que Sócrates respondeu a Hípias que "o Belo não era um atributo particular de mil e um objectos; sem dúvida, homens, cavalos, vestuário, virgem ou lira são coisas belas; mas acima de tudo isso, existe a Beleza em si" (Huisman, 1984: 16), acompanhou para sempre o homem. Platão, discípulo de Sócrates, dá os primeiros passos na busca deste Belo. No Fédon, o filósofo grego diz que na origem de toda a beleza deve haver "uma primeira beleza que pela sua presença torna belas as coisas que designamos por belas, qualquer que seja o modo como se faz essa comunicação"(Huisman, 1984:17), e é só pela ascese dialéctica que ascenderemos amorosamente a esse cume ideal do mundo das ideias, onde o perfeito Belo resplandece.
Muitos séculos passaram até que se despertasse deste sonho dogmático de existência de um belo-em-si, e para tal foi preciso esperar pela figura tutelar de Kant, que na "Crítica do Juízo Estético" pretende "superar a antinomia fundamental entre a ideia de um gosto subjectivo, imbuído do que a sensibilidade comporta de contigência, particular e arbitrário, e a ideia de um gosto universal e necessário. Entre estes dois pólos, o gosto ficava apenas reduzido ou a um prazer ou a um juízo" (Huisman, 1984: 36). Para o filósofo alemão, o gosto já não é apenas um juízo do sentimento, é também um sentimento do juízo, tornando-se, pois, um universal necessário e afectivo.
O sistema kantiano, profundamente influenciado pelos alvores do Iluminismo, vem demonstrar que "é permitido determinar, por conceitos a priori, a relação de um conhecimento que não provém nem da razão pura prática nem da razão pura especulativa, mas da faculdade de julgar proveniente do sentimento do prazer ou do desgosto" (Huisman, 1984: 36).
No interior da "Crítica do Juízo Estético" , a sua Analítica compõe-se de quatro momentos essenciais para a compreensão dos traços estéticos fundamentais do pensamento kantiano. Assim, num primeiro momento, considerado o da qualidade, ao comparar as formas de satisfação estética do gosto, do agradável e do Bem, Kant infere que "o gosto é a faculdade de julgar um objecto ou um modo de representar pela satisfação ou desprazer de forma inteiramente desinteressada. Designa-se por Belo o objecto dessa satisfação" (Huisman: 1984:38).
O segundo momento do esquema kantiano, conhecido pelo da quantidade, irá deduzir que a categoria da beleza é representada "sem conceito" como "objecto de uma satisfação necessária" definindo-se assim o Belo como "aquilo que agrada universalmente sem conceito".
No passo seguinte, o da relação, Kant vai mostrar que o juízo do gosto repousa em princípios a priori e totalmente independentes de conceitos como a atracção, a emoção, e a perfeição, propondo em princípio o ideal de beleza "pelo acordo mais perfeito possível de todos os tempos e de todos os povos" àcerca "das produções exemplares". Kant retira daqui a conclusão de que a beleza se manifesta como "a forma da finalidade de um objecto enquanto percebida sem representação de fim" .
Por último, o momento do juízo do gosto, segundo a modalidade, vem salientar que "a necessidade do contentamento universal concebido num juízo de gosto é uma necessidade subjectiva, na suposição de um senso comum", definindo o Belo a partir deste momento como "aquilo que é reconhecido sem conceito como o objecto de uma satisfação necessária" (Huisman, 1984: 39).
Este uso da Razão para a compreensão do fenómeno estético, apesar de duramente criticado por Adorno, traz na sua génese o fermento daquilo que se vai passar nas primeiras décadas deste século.
Desejando-o ou não, Adorno na sua Teoria Estética, última obra da sua vida, para rebater as propostas de Kant vai utilizar o mesmo instrumento que este último usou: a Razão. Adorno não deixa, no entanto, de admirar o edifício kantiano, pois segundo as suas palavras "Kant foi o primeiro a adquirir o conhecimento, ulteriormente admitido, segundo o qual o comportamento estético está isento de desejos imediatos; arrancou a arte ao filistinismo voraz, que continua de novo a tocá-la e saboreá-la" (Adorno, 1970: 21).
Adorno discorda, por completo, é da assunção kantiana da ideia de "satisfação desinteressada". Nesta questão, o homem da Escola de Franckfurt sublinha que "a satisfação desprovida deste modo do que em Kant se chama o interesse, torna-se satisfação de algo tão indefinido que já não serve para nenhuma defeinição de Belo" (Adorno, 1970: 21). A doutrina da satisfação desinteressada é pobre perante o fenómeno estético, até porque visa reduzi-lo "ao belo formal, sobremaneira problemático no seu isolamento". Adorno, imbuído que está da sua crítica dialéctica, à guisa de explicação refere que Kant ao realçar a diferença entre a arte e a faculdade de julgar valida consequentemente a diferença entre a arte e a realidade empírica, "mas não a idealizou sem mais: a separação da esfera estética em relação à empiria constitui a arte. No entanto, Kant fixou transcendentalmente esta constituição, em si mesma algo de histórico, e, mediante uma lógica simplista, equiparou-a à essência artística, sem se preocupar com o facto de que as componentes da arte subjectivamente pulsionais retornam metamorfoseadas na sua forma mais pura, que as nega" (Adorno, 1970: 22).
A Teoria Estética adorniana também não passou incólume às críticas dos seus pares e Peter Bürger, num artigo publicado na Revista de Estética, a propósito da figura de Adorno, dá conta de alguns exemplos significativos: "On lui reproche díavoir réduit líart au ëdenominateur commun de la négativitéí et de líavoir amputé de sa ëfonction de communicationí, on découvre le caractère théologique sous-jacent díune esthétique qui oppose líart à la réalité comme son ëautreí".
Esta ideia de uma estética que opõe a arte à realidade como seu "autre" está bem patente nas palavras dirigidas a Kant quando Adorno afirma que "ao que é desprovido de interesse deve juntar-se a sombra do interesse mais feroz, se pretende ser mais do que simples indiferença; muitas coisas provam que a dignidade das obras de arte depende da grandeza do interesse a que são arrancadas. Kant nega isto por causa de um conceito de liberdade, que pune com a heteronomia o que nem sempre é próprio do sujeito (...) Por conseguinte, em conjunto com aquilo de que ela brotou antiteticamente, a arte fica amputada de todo o conteúdo e supõe-se no seu lugar um elemento tão formal como a satisfação. Bastante paradoxalmente, a estética torna-se para Kant um hedonismo castrado, prazer sem prazer, com igual injustiça com a experiência artística, na qual a satisfação actua casualmente e de nenhum modo é a totalidade" (Adorno, 1970:22).
Nesta abordagem sumária, onde o vigor da crítica adorniana se manifesta em tudo onde repousa os seus olhos, como uma espécie de frémito desmedido e paradoxal, pois pode falar-se de uma paixão devoradora pela Razão, encontram-se algumas pistas sobre o cerne do assunto que se propõe, a partir deste momento, colocar em discussão.
Tendo sempre como pano de fundo os textos de Theodor Adorno sobre a "Indústria da Cultura"; e de Walter Benjamin a propósito da "Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", seguir-se-á não um caminho directo e de sentido único, mas alguns outros trilhos situados nas suas margens, que em aproximações sucessivas e graduais, servirão como pontes de passagem para o interior fulgurante destas duas personagens que marcaram, indelevelmente e cada um à sua maneira, o pensamento contemporâneo.
Sendo os homens, em grande medida, aquilo que as suas vidas deles fazem, nada melhor do que partir à descoberta destas personagens através das suas histórias pessoais, tantas vezes cruzadas, mas que nunca obliteraram uma independência intelectual que constituia, para ambos, ponto de honra.


A Criança e o Mestre


Se não soubessemos que Benjamin era 11 anos mais velho que Adorno e que este último foi, sem margem para dúvidas, "o primeiro e único discípulo de Benjamin" (Arendt, 91: 178), obteriamos da relação entre ambos uma imagem distorcida. Pelas epístolas trocadas entre dois, é sempre Adorno quem assume o papel do velho mestre, constantemente pronto a proteger, sempre presente quando Benjamin encontrava na sua vida "o senhor desajeitado", sempre pronto "a mandar-lhe cumprimentos" (Arendt, 91 : 187). O velho mestre seguia de longe os acontecimentos, sorrindo com as traquinices do "discípulo", outras vezes amargurado quando julgava que essas tropelias tinham a ultrapassado as marcas; usando muitas vezes palavras severas, para o chamar à razão. "A discussion of the Adorno/Benjamin debate will not necessitate abandoning the main thesis, but only demonstrate the dialectics of their friendship" (Buck-Morss, 1977: 139).
A nova orientação política marxista de Benjamin, ligada à sua paixão antiga pela mística judaica, explica que "unique among his friends, only Adorno really suported Benjaminís efforts to incorporate both poles" (Buck-Morss, 1977: 141). Mas toda a paciência tem limites e o caso muda de figura quando Benjamin descobre o surrealismo, tornando-se amigo de Brecht, um homem que Adorno pura e simplesmente detestava: "When Benjamin had found in surrealism an aesthetic model for his theological impulse which he now understood as ëprofane illuminationí, Adorno referred to such illumination as ënegativeí, or ëinverseí theology, equating it with aesthetic experience" (Buck-Morss, 1977: 141).
Benjamin tem perfeita consciência da sua dualidade teórica e refere-se a ela como a sua "Janus-face". Esta hercúlea tarefa de unir aquilo que não se pode juntar é considerada uma "intellectual schizophrenia [wich] repeatedly exasperated Adorno, whose own notion of profane illumination was to extrapolate out of the extremes of theology and Marxism to the point where they could be shown to converge, rather than simply to present these two poles in unmediated juxtaposition" (Buck-Morss 1977: 141).
Apesar deste permanente desacordo entre Adorno e Benjamin, o primeiro sempre alimentou a esperança de salvar o náufrago que julgava à deriva num mar de ilusões. O próprio Benjamin, extremamente lúcido, como era o seu timbre, também tem essa imagem de naufrágio iminente, e numa carta de 1931 dirigida a Gerhard Scholem, dá conta da sua situação desesperada, escrevendo: "Como náufago que se mantém à tona trepando a um mastro já vacilante. Mas daí tem a oportunidade de lançar um sinal, pedindo socorro" (Arendt, 91: 199).
"During all of their disagreements Adornoís persistent goal was to rescue Benjamin from what he considered the Scylla of Brechtian materialism on the one hand, and the charybdis of Judaic theology on the other" (Buck-Morss, 77: 141). Adorno responde sempre à chamada, mas os motivos são sempre diferentes dos de Benjamin.
Para um entendimento mais preciso destas duas fortes personalidades, retratar-se-á de seguida algumas divergências de pensamento e de atitudes que os vão colocando em campos opostos, por vezes mesmo extremados.


O homem da instituição
versus o "flâneur"

O Instituto de Pesquisa Social é a casa de Adorno. Ele e Max Horkheimer fundam os alicerces de uma Teoria Crítica da Sociedade, que mesmo exilada nos Estados Unidos, se irá manter bem viva até ao início da década de 60.
A natureza adorniana não é de modo algum expansiva, e quando muitos intelectuais aderiam entusiasticamente ao Partido Comunista, Adorno, um marxista convicto, colocou sempre reservas em envolver-se no pulsar da vida política do seu tempo. Esta atitude manteve-se íntegra ao longo do seu percurso pessoal, criando dissabores aos esquerdistas da década de 60, que já o viam como um "pai" e um líder natural do movimento contestatário que surgia um pouco por toda a Europa. Contudo, esta sua natural reserva e distanciamento leva, rapidamente, ao desapontamento generalizado e à criação de suspeitas em seu redor, tornando-se Adorno, sem o ter desejado, "the most controversial theoretician of the German New Left" .
Controverso como era no interior da nova esquerda germânica, é muito natural que o percurso de crítica do pensamento moderno sobre si próprio que constrói, apesar de ter sido discutido ao longo do século, permaneça, no entanto, numa zona de penumbra. O próprio Adorno não favorece de todo uma ampla expansão das suas ideias e dos seus textos, tanto dentro do quadro alemão, como no período de exílio na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde a sua figura sempre se manteve afastada dos circuitos visíveis da fama.
Bem distinta é a vida e o percurso pessoal de Walter Benjamin. O mínimo que se pode dizer é que se trata de um homem fascinado. Como todos os seus quadros de referência, atitudes e comportamentos pertencem ao século anterior, esta personagem parece ter sido deslocada repentinamente para este século, sentindo-se maravilhada com o que estava a acontecer num mundo totalmente novo, digno de todas as explorações.
Neste estranhamento poder-se-á filiar o seu pensamento inconstante, desconcertante por vezes. As suas paixões intelectuais revelam bem este "flirt" pelas coisas, num eterno deambular à procura de algo, algo que Benjamin muitas vezes se apercebia não ser o essencial, mas sim um caminho percorrido que o levava aos mais estranhos recônditos da experiência humana. Por isso, os seus biógrafos têm dificuldade em o descrever, e a única forma encontrada para chegar até este autor passa por uma série "de afirmações negativas" que escapam às nossas referências habituais.
"A sua erudição era grande, mas ele não foi um erudito; o seu trabalho tinha a ver com os textos e a sua interpretação, mas não era um filólogo; sentia-se extremamente atraído, não pela religião, mas pela teologia e pelo tipo de interpretação teológica segundo o qual o próprio texto é sagrado, mas não era teólogo e não manifestou especial interesse pela Bíblia; era um escritor nato, mas a sua maior ambição foi criar uma obra exclusivamente composta de citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust e Saint-John Perse, e já antes disso traduzira os ëTableaux Parisiensí de Baudelaire, mas não era um tradutor; fazia recensões críticas de livros e escreveu um livro acerca do barroco alemão e deixou inacabado um enorme estudo sobre o século XIX francês, mas não era um historiador da literatura; (...) ele pensava poeticamente mas não era poeta nem filósofo" (Arendt, 91: 180).
Esta larga passagem de Arendt traduz uma personalidade multifacetada, que se dava bem pelas margens do pensamento contemporâneo, apesar de reconhecer os perigos que podiam advir dessa situação incómoda e ser um desastre em interpretar esses sinais, como a catadupa de infortúnios ocorridos na sua curta vida o prova.
Benjamin nunca pertenceu verdadeiramente a nenhuma escola de pensamento, e manteve-se ligado ao Instituto de Franckfurt sempre por laços muito ténues e fracos. No entanto, era um homem de amizades que correspondiam sempre às suas motivações intelectuais.
Na esteira do que foi dito, é de fácil compreensão os rancores mudos que esta inusitada figura, sem se aperceber de nada, criava à sua volta. Sem mexer um dedo para evitar desastres iminentes e perfeitamente previsíveis, transmitia sempre a impressão, nas suas acções, de que estava a fugir deles.
Walter Benjamin tinha inculcada até à medula o espírito das errâncias. "É ao flâneur, vagueando sem rumo por entre a multidão das grandes cidades, em oposição deliberada à sua actividade febril e utilitária, que as coisas revelam o seu sentido íntimo (...), e só o flâneur, na sua errância descuidada, consegue captar a mensagem" (Arendt, 91: 190-191).
O fascínio pelas passagens de Paris, que o autor descobre ainda novo, não mais desaparece, e nada melhor que a figura do "flâneur" para viajar através "das fachadas uniformes, limitando as ruas como paredes interiores, que fazem uma pessoa sentir-se fisicamente mais resguardada nesta cidade do que em qualquer outra" (Arendt, 91: 201), comenta um Benjamin assombrado. "As passagens que ligam entre si os grandes boulevards e oferecem um abrigo contra as intempéries exerceram sobre Benjamin um tão extraordinário fascínio que ele se referia à grande obra que projectava escrever sobre o século XIX e a sua capital chamando-lhe simplesmente ëAs Passagensí" (Arendt, 91: 201).
Este andar à deriva de Benjamin, que irritava de sobremaneira Adorno e que era considerada por este como uma pura perda de tempo, traz na sua génese a próxima divergência entre os dois autores.


A dialéctica negativa versus
o mundo das aparências

A crítica adorniana, profundamente racionalista, tem nos seus limites um exercício de dialéctica negativa que leva à refutação da razão, refutação essa levada a cabo pela própria razão. Como horizonte de reflexão, cada vez mais abstractizada, está o fenómeno cultural contemporâneo. Esta cultura, na visão de Adorno, é enformada pelo fenómeno de emergência das massas, que ganha expressão em todos os campos da actividade humana, seja ela política, económica ou social. Aliado a esta massificação está um poderoso processo de alta tecnologização, que se expande dos processos materiais para atingir os processos de reprodução simbólica, e assim o nível individual é também duramente violentado.
A ideia de separação das esferas material e simbólica estilhaça-se devido ao consumismo cultural. Tudo se torna uniforme e Adorno ó onde Benjamin se maravilhava com a intensa diversidade que a tecnologização da cultura traz no seu seio ó apenas encontra uma trágica semelhança que se apega a todas as coisas tentando devorá-las.
Daí o seu espanto, e a crítica a Benjamin pela sua "descrição meticulosa dos pormenores factuais". "Quanto mais pequeno o objecto, mais susceptível lhe parecia de conter, sob a forma mais concentrada, tudo o resto" (Arendt, 91: 190), como se o mundo fosse um imenso fractal desdobrando-se infinitamente sobre si próprio. O fascínio benjaminiano, ao contrário do que sucedia com Adorno, nunca foram as ideias, mas sempre o fenómeno. Nas palavras de Benjamin, isto assim sucede porque "o que me parece paradoxal em tudo quanto justificadamente dizemos belo é o facto de se manifestar no mundo das aparências" (Arendt, 91: 190). A biógrafa chama a este paradoxo "o prodígio da aparição", que esteve sempre na base de todas as suas deambulações. Mesmo a paixão de Benjamin pela dialética sofre destes estímulos encantatórios das coisas. Curiosa é a crítica de Adorno a esta excentricidade, que é apelidada de "não dialética", pois que se move num quadro de "categorias materialistas que de modo algum coincidem com as marxistas".
Benjamin, que chegou a pensar em aderir ao Partido Comunista seria talvez o marxista mais singular de toda a história. Pouco preocupado com o edifício conceptual de Marx, era atraído, no entanto, pela doutrina da superstrutura, uma pequena franja do pensamento marxista e a que o próprio Marx dedicou poucos parágrafos, sendo certo que só muitas décadas depois tal conceito viria a transformar-se na coqueluche e deleite da inteligentzia dos anos 60.
Mas "Benjamin apenas se serviu desta doutrina enquanto estímulo heurístico-metodológico, pouco ou nada se interessando pelo seu pano de fundo histórico ou filosófico. O que o fascinou foi o facto do espírito e a sua manifestação material estarem tão intimamente ligados que parecia possível descobrir em toda a parte as ëcorrespondancesí baudelairianas, cujo poder de se clarificarem e iluminarem umas às outras quando devidamente correlacionadas, acabaria por dispensar, em última análise, todo e qualquer comentário interpretativo ou explicativo" (Arendt, 91: 189).
Como é evidente, esta atitude escapa a qualquer quadro de referência dialético e Adorno critica este "elemento estático" do pensamento benjaminiano. Adorno vai mais longe e salienta que "para se compreender correctamente Benjamin há que descortinar por trás de cada frase a conversão da mais extrema agitação em algo estático, que é afinal a noção estática do próprio movimento".
Benjamin não se interessava minimamente por teorias ou "ideias" que de imediato não assumissem a forma exterior, daí que o seu pensamento "não visava nem podia traduzir enunciados irrefutáveis e universalmente válidos; estes eram substituídos, como Adorno observa em tom de crítica, em ëenunciados metafóricosí" (Arendt, 91: 191) .
Por isso, voltando de novo à teoria da superstrutura, é bem de ver que Benjamin não tinha qualquer dificuldade em entendê-la "como a doutrina definitiva do pensamento metafórico ó precisamente porque estabelecia com toda a naturalidade, e evitando qualquer espécie de mediações, uma relação directa entre a superstrutura e a chamada infra-estrutura ëmaterialí, que para ele equivalia à totalidade dos dados da experiência sensível" (Arendt, 91: 193).
Deste fascínio pela forma exterior das coisas, nasce uma nova divergência com o pensamento adorniano, a partir da aproximação de Benjamin ao surrealismo, sobretudo quando encontra na sua vida uma figura como a de Bertolt Brecht. Os seus dois amigos de sempre ó Adorno e Scholem ó sobre este encontro apenas referem a "influência desastrosa" de Brecht em Benjamin.

Anti-vanguardismo
versus Surrealismo

Theodor Adorno, na sua Teoria Estética, dá uma imagem terrível do que é a arte nos dias de hoje. A uniformização da indústria cultural permitiu "a supressão da diferença entre o artista como sujeito estético e o artista como pessoa empírica" (Adorno, 70: 283) e implicou que "a distância da obra de arte à empiria foi suprimida sem que, no entanto, a arte tenha sido restituída à vida livre que não existe. A sua proximidade intensifica o lucro, a imediaticidade é organizada para enganar" (Adorno, 70: 283).
Para Adorno, até os movimentos vanguardistas fazem este "engano das massas" quando pretendem "assinalar à arte, teórica e até mesmo praticamente, o seu lugar na sociedade". É que depois da arte ter sido reconhecida como um facto social igual a tantos outros, "o complemento do lugar sociológico sente-se-lhe, por assim dizer, superior e dispõe dela". Por isso é que "as perturbações vanguardistas das reuniões da vanguarda estética são tão ilusórias como a crença de que elas são revolucionárias e que a revolução é uma forma de belo: a amusia não se situa por cima, mas abaixo da cultura, e o ëengagementí muitas vezes não é senão falta de talento ou concentração, um abrandamento da força" (Adorno, 70, 283).
Peter Bürger, num artigo intitulado "Líanti-avant-gardisme dans líesthétique díAdorno" refere que "líattaque dirigée par les mouvements díavant-garde contre le statut díautonomie de art (...) ne peut être interprétée par Adorno que comme un pseudo-dépassement de líapparence esthétique, et non pas comme le lieu historique díun renversement qui permettrait de penser les contradictions de líart au sein de la société bourgeoise". É neste ponto que reside o anti-vanguardismo de Adorno que, tal como um guardador de margens, quer salvar a esfera da arte: "Contre les tendances conduisant à une dissolution de líart en actions (dadaïsme), expression (expressionisme), révolution de la vie quotidienne (surréalisme), Adorno veille à ce que la ëfrontière ne soit pas violéeí, frontière qui délimite la sphère de líart. Parce quíil ne considère pas que la tentative díune réinsertion de líart dans la vie quottidienne soit une étape nécessaire à líinterieur de la société bourgeoise, et quíil y avoit au contraire um retour à la barbarie, sa critique des catégories de líesthétique idéaliste aboutit finalement à leur sauvegarde" (Burger: 85, 90).
Podemos afirmar que a estética adorniana acaba por ser uma estética saudosística, que vive obcecada com a ideia de reconciliação do homem com a natureza, com a ideia platónica que o homem busca qualquer coisa de essencial que perdeu. Para Platão a arte era algo de dispensável e nocivo, porque simulacro, imitação inferior da realidade. Para Adorno as vanguardas, e em geral toda a arte praticada no seu tempo, era dispensável e nociva, porque simulacro ó não já inferior mas hiper-real ó e simulacro ao serviço de um projecto de dominação e embrutecimento do homem.
Como tal, a nostalgia platónica das formas puras não encontra qualquer justificação para estas novas formas de arte: "Líutopie renouvelée et actualisée dans le contexte des mouvements díavant-garde, selon laquelle tous devraient pouvoir síépanouir en produisant librement, níest pas dévoloppée par Adorno parce que son esthétique est centrée sur le concept de la grande oeuvre díart qui garantit la pérennité de líartiste" (Burger, 1985: 93).
Pelos mesmo motivos que Adorno se afasta dos movimentos vanguardistas, é que Benjamin se aproxima firmemente do surrealismo como modelo estético a seguir. "Com Brecht [Benjamin] podia praticar aquilo a que o próprio Brecht chamava ëpensamento brutoí" A ideia era para Brecht "aprender a pensar em bruto. O pensamento em bruto é o pensamento dos grandes" e Benjamin conclui que "para muita gente, um dialéctico é um amador de subtilezas... Mas a verdade é que os pensamentos em bruto devem fazer parte integrante do pensamento dialéctico, pois não são mais do que a referência da teoria à prática... Só o pensamento em bruto pode afirmar os seus direitos no campo de acção" (Arendt, 91: 194) . E é no surrealismo que Benjamin vai encontrar este campo de acção posto a descoberto pela nova técnica artística ó escrita automática, ready-made, cadáveres esquisitos ó imprimida pelo pensamento em bruto.
Mais ainda, "It was the artistic technique of surrealism that fascinated Benjamin. Surrealist art portrayed everyday objects in their existing, material form (in this literal sense surrealist fantasy was ëexactí), yet these objects were at the same time transformed by the very fact of their presentation as art, where they appeared in a collage of remote and antithetical extremes. Prototypical of Benjaminís ëdialectical imagesí, surrealist atwork illuminated unintended truth by the juxtaposition of ëtwo distant realitiesí from wich sprang ëa particular light..., the light of the imageí" (Buck-Morss, 77: 125).
Em Benjamin a função cultural da arte tradicional termina e em seu lugar surge uma arte enraízada na praxis. O valor regulativo que nos diz o que é a arte é o seu valor expositivo e já não o seu valor cultural. O valor não está na obra em si mas na obra que se mostra, que se dá a ver.
Por isso, para Benjamin é fabuloso que a flor azul deixe de ser sonhada, pois através da técnica agora é colocada à disposição de todos, e todos podem vê-la, tocá-la, e se possível cheirá-la. É a flor azul, aliás, que conduz este trabalho para os textos sobre a questão estética de Adorno e Benjamin.
É fácil imaginar o fascínio de Benjamin, e a negatividade de Adorno, à volta da flor azul. Para o primeiro ela seria tão mais perfeita quanto maiores fossem as possibilidades de reprodutibilidade técnica que oferecesse. Poderá ser grande injustiça dizê-lo, talvez Benjamin tivesse olhos mais virgens, mas a imagem que isto irremediavelmente evoca é a do ramo kitsch, de plástico, repetido ad nauseam num qualquer hipermercado (hipermercado que, como na imagem do fractal, também se repete infinitamente, em progressão geométrica e imparável). Para Adorno, pelo contrário, a flor é algo que se sonha e que se busca, e nesse sentido é um objecto raro e de uma delicadeza diáfana, como se possuisse asas translúcidas e por isso constantemente se escapasse. É preciosa e rara como um perfume ó talvez até exista tão só apenas o perfume ó que embriaga despertando o desejo mais intenso, mas ao mesmo tempo volatiliza-se, permanecendo inacessível à captura e à posse. Adorno é tão vago nos seus textos de estética, que poderiamos dizer que para ele talvez nem sequer exista flor azul, só a ideia, a nostalgia de um perfume.



Sob o signo tentacular
da dominação

Na sua análise sobre as Indústrias da Cultura, Adorno coloca o acento problemático na figura do indivíduo ameaçado pelo poder da técnica sobre a sociedade. E se "a racionalidade da técnica hoje é a racionalidade da própria dominação" (Adorno, 85: 114), então conclui-se que "é o poder dos economicamente mais fortes que se faz sentir sobre a sociedade". Os gostos são padronizados , a produção em série faz com que "a flor azul" não tenha uma pétala fora do estribilho que é a uniformização. Até porque "se tudo vem da consciência", então "na arte para as massas vem da consciência das equipas de produção" (Adorno, 85:117). Os próprios meios audio-visuais, que tentam oferecer uma diversidade de escolhas, não estão mais do que "a aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos, a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã -- numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total" (Adorno, 85: 116).
A tese adorniana é que aquilo que se dá a ver como diversidade não passa de uma mera aparência, e o que realmente sucede de facto, com a chegada das indústrias culturais, é a introdução de uma marca identificativa que constitui a uniformização. Isto significa que o sujeito já recebe o objecto com as marcas, os signos de como há-de ser percebido, e portanto, face a ele, é totalmente passivo ó nada retira do objecto, porque também nada lhe dá, e já perdeu há muito a capacidade de sonhar. Estes sinais são para Adorno tão visíveis nos regimes ditatoriais como nos ditos democráticos: em ambos é o autoritarismo que marca a sua presença, distinguindo toda a cultura de massas como idêntica.
Descobre Adorno esta uniformidade na falsa identidade entre o universal e o individual que os poderes de dominação instituídos gostam de apregoar aos quatro ventos. Nessa aparente diversidade esconde-se a marca organizadora: o dinheiro. Este, para além de ser um instrumento económico, vai conformar um corpo social, impondo tão só uma única regra: dar a aparência de que esse corpo se organiza de acordo com a liberdade de cada um.
Nada no campo cultural escapa a esta totalidade, aliás, é aí que surge uma dominação mais refinada, sustentáculo de todo o edifício de dominação, e por isso o mundo inteiro vê-se na contingência de ser "forçado a passar pelo filtro da indústria cultural". Esta desenvolveu-se a partir de um "predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora veículo da Ideia e com essa foi liquidada (...) A tudo isto deu fim a indústria cultural mediante a totalidade. Embora nada mais conheça além dos efeitos, ela vence a sua insubordinação e os submete à fórmula que substitui a obra"(Adorno, 85: 118).
A obra de arte enquanto construção desaparece, restando apenas um produto sincrético, já preenchido tecnicamente, numa totalidade que vai distribuindo os elementos mediante as possibilidades reais de cada técnica, prefigurando as próprias partes que a compõem. O artista, na era da indústria cultural, não passa de um simulacro, uma figura anacrónica, onde já não se pede, na sua intervenção, um confronto com os materiais. Tudo já está previamente programado e nada escapa a este olho ciclópico da cultura.
A necessidade de criação esvai-se numa injuncção de técnicas prévias que tornam este trabalho uma mera imitação de modelos, numa espécie de sucedâneo da identidade. "A indústria cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai o seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura" (Adorno, 85: 123). Tal como Platão, portanto, é precisamente o facto de a arte ser ou, para Adorno, se ter tornado, simulacro, que é criticado.
Nesta completa desvirtuação da obra, o lugar à interrogação desaparece, restando apenas as piruetas técnicas de uma arte que se ri de si própria. Para que este absoluto imitativo possa funcionar tem de excluir-se deste universo o novo, e nisso a indústria cultural é imbatível, sabe muito bem como o repelir: "Nada deve ficar como era, tudo deve estar em constante movimento. Pois só a vitória universal do ritmo da produção e da reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada surgirá que não se adapte. O menor acréscimo ao inventário cultural comprovado é um risco excessivo" (Adorno, 85: 126). Este novo é, no entanto, reclamado pelas formas de arte emergentes desta era da tecnologização, mas tal facto é sinal de que "a arte renega a sua autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto da novidade" (Adorno, 85: 147).
O ciclo fecha-se e na indústria da cultura o valor de alguma coisa está na possibilidade da sua troca, nada no seu interior existe em si mesmo se não se obtiver daí algum lucro. O próprio valor de uso da obra de arte, que é o seu ser mais íntimo, é considerado a partir de agora "como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte - torna-se o seu único valor de uso, a única qualidade que elas disfrutam" (Adorno, 85: 148).
O filósofo da Escola de Franckfurt remata a sua ideia concluindo que "a arte como um género de mercadoria, que vivia de ser vendida e, no entanto, de ser invendível, torna-se algo hipocritamente invendível, logo que o negócio deixa de ser meramente a sua intenção e passa a ser o seu único princípio"


O fascínio da infinita
reprodutibilidade

Estas linhas de força postas no ensaio "Indústria Cultural" prenunciam já o modo crítico como Adorno irá receber o texto de Walter Benjamin sobre "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica". O próprio Benjamin também não estaria a contar com uma boa recepção. Apesar de estar "clearly excited about the piece, believing it would be an important theoretical contribution to the debate on Marxist aesthetics going on among artists and literary figures both inside and outside the Communist Party in Europe during the thirties" (Buck-Morss, 77: 146), adiou por largos meses o envio da cópia do manuscrito a Adorno e, finalmente, quando se decidiu "the response, when it came, was critical". Até porque não podia ser de outra maneira. Os temas tratados aproximavam-se demasiado do próprio trabalho de Adorno "for the points of difference no to be abrasive" (Buck-Morss, 77: 147).
Benjamin inicia o texto tomando, desde logo, o conceito da superstrutura de Karl Marx, para com ele empreender o caminho em torno das recentes transformações da cultura. "A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infra-estrutura, necessitou de mais de meio século para tornar válida a alteração das condições de produção, em todos os domínios da cultura" (Benjamin, 92:73). Os propósitos do trabalho são anunciados no prólogo: "Os conceitos seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para a formulação de exigências revolucionárias em política de arte" (Benjamin, 92:74).
Ao querer trazer o método marxista de crítica ao modo de produção capitalista para o campo artístico, entendido este como um processo separado e que precisa de uma análise própria, Benjamin está a deitar achas para a fogueira do debate que o opõe a Adorno. Este último concordará que a arte tem um desenvolvimento próprio, mas onde observa "artís transformation brought about by the dialectical praxis between the artist and the historical developed techniques of his trade", Benjamin situa "the dialectic solely within the objectives forces of the superstructure, that is, within the mechanical technologies of artís reproduction" (Buck-Morss, 77: 147) .
Este arrebatamento benjaminiano pelo marxismo acaba por subverter a doutrina por completo, pois já não há lugar para pensar numa infraestrutura prévia à própria cultura: no seu interior é que se encontram os seus dois níveis de existência, e as novidades instauradas ao nível da arte passam pelos dispositivos técnicos na reprodução dos objectos artísticos.
O seu método analógico, para explicar como estas transformações se realizam no mundo artístico, está mais uma vez demonstrado no exemplo que toma para desenvolver os seus raciocínios posteriores. A fotografia servirá de base a esta tarefa de explicar o todo pela ínfima parte ó reflexo ainda da "teoria" dos cristais ou do fractal ó e, desta forma, um novo campo de investigações abre-se à sua frente. "Pela primeira vez, com a fotografia, a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva. Uma vez que o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala" (Benjamin, 92: 76).
Com a reprodução artística entramos num novo mundo, havendo um outro que se fecha para sempre. A autenticidade que constituia o original da obra de arte, a sua existência única num espaço e num tempo próprio, onde faz a sua aparição, perde-se por completo com a introdução das técnicas que permitem a reprodução em série dessa obra. O conceito de aura ó o aqui e o agora do original ó torna-se uma quimera do passado. Esta transformação dialéctica da arte, que a leva à sua auto-destruição, é, curiosamente, entendida por Benjamin como uma espécie de bênção, pois, assim, esta adquire um novo valor de uso. A obra deixa de depender parasitariamente do ritual para se basear numa outra prática: a política.
"Specifically, the possibility of the artworkís unlimited duplication robbed it of its ëauraí, that very uniquess wich Benjaminís original philosophy had been the source of its cognitive value. Now he claimed that liquidation of artís aura had a positive effect, and art acquired a new use value" (Buck-Morss, 77: 147).
A grande força da reprodutibilidade da obra de arte, que tem para Benjamin o seu agente mais poderoso no filme, reside no processo de "ao multiplicar o reproduzido, colocar no lugar da ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das suas situações. Ambos os processos provocam um profundo abalo do reproduzido, um abalo da tradição que é o reverso da crise actual e a renovação da humanidade. Estão na mais estreita relação com os movimentos de massas dos nossos dias" (Benjamin, 92: 79). Dias radiosos estes, julga Benjamin, que esperam a humanidade com "a liquidação do valor da tradição na herança cultural" .
A obra de arte, ao deslocar-se a caminho dos indivíduos, aumenta o seu poder, tornando-se irrecusável, intrometendo-se quer na esfera da experiência individual, quer na própria vida colectiva, onde a arte passa a ser vista como um medium social. Os novos caminhos estão prontos a ser percorridos, e aí reside a esperança de Benjamin depositada na arte que escapou às amarras da aura. Atrás dessas transformações estão os dispositivos técnicos e uma nova sociabilidade ávida por estes produtos colocados à sua disposição.
Este é mais um pomo de discórdia entre Adorno e Benjamin. Enquanto o primeiro compreendia a massa como algo inexistente já que é apenas o produto de uma cultura; Benjamin, bem pelo contrário, verifica que é o modo como as pessoas se juntam que leva a existir uma cultura específica para aquele tipo muito próprio de sociabilidade. A função política da arte surge de uma arte enraízada na praxis, que remete para a vida, para o quotidiano na sua imediaticidade.
Se em Benjamin era explicada a possibilidade que arte tinha de se tornar mais progressiva na sua autonomia, Adorno via, por seu lado, nesta afirmação, uma traição às suas anteriores posições: "In your earlier writings, the great continuity of wich, it seems to me, your present essay dissolves (...) I find it questionable, then ó and here I see a very sublimated remnant of certain Brechtian motifs ó that you now effortlessly transfer the concept of magical aura to the ëautonomous work of artí and flatly assign the latter a counter-revolutionary function" (Buck-Morss, 77: 148).
A noção de negatividade na arte é central em Adorno. Essa negatividade é encarada como uma forma de resistência. O que estimula Adorno nos seus trabalhos é essa afirmação subjectiva do sujeito, mas tal questão pouco incomoda Benjamin, daí poder olhar para a obra de arte na cultura de massas como uma apropriação emancipatória da colectividade. Aqui a compreensão da arte e da cultura fazem-se a partir de uma teoria da experiência. Chegamos neste ponto a um dos aspectos fulcrais do texto benjaminiano, e que diz respeito ao modo como a percepção sensorial do homem se organiza.
Se para Adorno o lugar de recepção da obra de arte no processo industrial da cultura é já uma questão pré-determinada, operando por isso num registo intelectual muito pobre, em Benjamin atinge uma zona privilegiada das suas investigações. A entrega sensorial dos indivíduos é feita numa experiência que é pura fruição em dois planos distintos: uma relação crítica com as obras e a diversão. "Aproximar as coisas espacial e humanamente é actualmente um desejo das massas tão apaixonado como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade através do registo da sua reprodução. Cada dia se torna mais imperiosa a necessidade de dominar o objecto fazendo-o mais próximo da imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução" (Benjamin, 92: 81).
Os suspiros pelos sonhos com as flores azuis acabam quando se pode "retirar o invólucro a um objecto, destroçar a sua aura", e estas são formas do domínio "de uma percepção, cujo ësentido para o semelhante no mundoí se desenvolve de forma tal que, através da reprodução, também o capta no fenómeno único" (Benjamin, 92: 81).

Salvar a estrela
dançante

Adorno e Benjamim, duas visões do mundo que se cruzam e entrelaçam, sem nunca perderem de vista que o seu rumo não é o mesmo. Da querela mantida entre estes dois autores na década de 30, podemos perguntar, a 60 anos de distância, afinal qual dos dois esteve mais próximo do que a realidade viria a confirmar?
É indiscutível que na imediaticidade dos tempos sombrios que se avizinhavam da Europa, é Adorno o mais lúcido. Benjamin, ainda esperançoso com o nascente regime comunista na União Soviética, continuava à espera de "uma politização da arte".
Os campos de concentração da Alemanha nazi, o uso, pela primeira vez na história da humanidade, de armas atómicas, as purgas estalinistas no período pós-guerra, vieram ampliar a noção de negatividade introduzida pelo pensamento adorniano, ultrapassando-a mesmo quando os gases se abriram sobre os corpos de milhões de judeus. O irracional irrompe nos campos de concentração e a Razão nada mais pode fazer senão remeter-se ao silêncio. Adorno conclui, anos mais tarde, que "não há poesia depois de Auschwitz!" (Tar, 1977: 141), como se fosse o epitáfio trágico à frase, cheia de esperanças, proferida por Benjamin, e que dava conta de que o homem tinha deixado de sonhar com flores azuis.
Não deixa de causar perplexidade esta atitude esperançosa por parte de um homem habitado por uma incomum vocação para a desgraça, e cuja vida tão copiosamente cumpriu este fado. Deve notar-se, todavia, que por mais sedutora e terna que tal crença na capacidade ilimitada de reciclagem do humano possa parecer, a atitude não é original. A atracção de Benjamin pelo novo, pelas potencialidades abertas pela tecnologização crescente não é mais do que uma erupção tardia da atitude que, no início do século, animara Marinetti e todos os futuristas, fascinados pelo esplendor da máquina, o brilho dos motores reluzentes, a potência infinita de uma máquina a vapor... "Um automóvel que ruge, que parece correr debaixo de fogo, é mais belo do que a Vitória de Samotrácia" (Marinetti, 79: 49) fora, nos seus dias, um programa de trabalho fecundo e original, mas a história, essa grande desmancha-prazeres, veio muito simplesmente confirmar como tal fascínio podia acabar mal.
Limitando-se o objecto deste trabalho apenas à questão estética nos dois textos fundadores produzidos por Adorno e Benjamin, as ressonâncias políticas que daí advêm são muitas e podem trazer alguma luz ao pensamento actual.
Adorno, nos anos subsequentes à guerra, vai afirmar que "o capitalismo encontrou recursos em si mesmo que lhe permitiram adiar indefinidamente o colapso do sistema" (Tar, 1977: 163). Com a integração da classe trabalhadora na sociedade burguesa, as relações de produção tornam-se mais elásticas. A par deste factor, o progresso tecnológico vem minimizar a parte do trabalhador na produção da mais-valia e, como tal, continua a haver "uma dominação sobre as massas através do processo económico, mas a antiga opressão social tomou novas formas anónimas e tornou-se universal" (Tar, 1977: 163).
O fracasso em encontrar um sujeito revolucionário a partir daí levou Adorno a erigir "uma torre de marfim" em torno da sua dialéctica negativa, que nunca mais abandonou. Nem mesmo os chamamentos de uma aliança temporária de Marcuse com a "pseudo- revolução e os seus filhos" nos movimentos estudantis dos anos 60, o fizeram demover do seu "exílio" auto-imposto, já que era firme a sua ideia de que "no processo de integração do proletariado no sistema, a indústria da cultura foi instrumental na manipulação tanto do consciente como do subconsciente" (Tar, 1977: 164).
Por isso, Adorno não entende a arte do seu tempo como algo de novo, como espaço de recusa e de revolta perante o instituído. Mas quer Adorno queira, quer não, há algo que chegou ao fim e nada como o dadaísmo para mostrar o esboroamento desse edifício: "DADA não é uma doutrina para ser posta em prática: Dada, ó é para mentir: um negócio que corre bem. ó Dada contrai dívidas e não vive agarrado ao colchão. Deus-nosso-senhor criou uma língua universal, e é por isso que ninguém o leva a sério. Uma língua é uma utopia. Deus pode dar-se ao luxo de não ser bem sucedido: Dada também. Dada é um luxo ou Dada está com o cio. Deus é um luxo ou Deus está com cio. Quem tem razão: Deus, Dada ou o crítico?" (Tzara, 1987: 46).
Benjamin está profundamente encantado com a questão da técnica, fascinado com os caminhos que os novos objectos artísticos apontam e permitem percorrer, mas, uma coisa é certa, as categorias fundamentais, e ele apercebeu-se disso, que governavam o Belo, já não são as mesmas ou, pura e simplesmente, desapareceram no redomoinho da história. Daí, talvez, a posição mais consentânea com este caminhar seja a de Walter Benjamin. Mesmo que a dominação alastre e faça uso da sua força em todos os níveis da actividade humana, será sempre possível criar bolsas de resistência nas suas fronteiras, nem que esse trabalho seja apenas abrir trincheiras.
A grandeza de Adorno está na sua Grande Recusa de aceitar que talvez já não haja volta atrás. A nossa poderá estar em admitir que os valores fortes talvez tenham morrido para sempre, e neste novo universo fluído e caótico tentar, à semelhança de Benjamin, manter viva a esperança. "É preciso um caos dentro de si para gerar uma estrela dançante", diria profeticamente Nietzsche.



Bibliografia


Adorno, Theodor , 1970, Teoria Estética, Edições 70, Lisboa

Adorno, Theodor et al., 1985, Dialéctica do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro

Arendt, Hannah, 1991, Homens em tempos sombrios, col Antropos, Relógio díÁgua, Lisboa

Benjamin, Walter, 1992, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, col. Antropos, Relógio díÁgua, Lisboa

Burger, Peter, 1985, "Líanti vanguardisme dans líesthétique díAdorno", in Revue díEsthétique, nouvelle serie, nº 8, Éditions Privat, Toulouse

Buck-Morss, Susan, 1977, The Origin of Negative Dialectics, The Free Press, New York

Huisman, Denis, 1984, A Estética, col. Biblioteca Básica de Filosofia, Edições 70, Lisboa

Marinetti, 1979, Antologia do futurismo italiano, col. Provisórios e Definitivos, Editorial Vega, Lisboa

Melo, Adélio, 1977, Para Além de Sade, Edições Árvore, Porto.

Tar, Zoltán, 1977, A Escola de Francoforte, Edições 70, Lisboa

Tzara, Tristan, 1987, Sete Manifestos Dada, col. Cão Vagabundo, Hiena Editora, Lisboa.

(FONTE:http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/silva.html)

Walter Benjamin E O Tempo

Eide Sandra Azevêdo Abreu 1



Para Rodrigo, Edna e Aguinaldo




Neste artigo, procuramos, através de textos de Walter Benjamin, escritos na década de 1930 - “Experiência e pobreza” (1987), “O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow”(1983), “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”(1983) e “Sobre alguns temas em Baudelaire”(1983) -, demonstrar o modo como, no seu pensamento, figura o tempo da grande indústria. Numa primeira parte, expomos alguns aspectos considerados pelo autor como próprios da condição dos homens modernos, trazendo à luz as questões levantadas nos textos selecionados. Num segundo momento, procuramos identificar o posicionamento adotado por ele frente a tais questões.



Dimensões do declínio da experiência

A perda da experiência e o fim da narrativa: solidão e esquecimento



Por entre a multiplicidade de temas que afloram nos textos de Walter Benjamin selecionados para, neste artigo, identificarmos o modo como o filósofo alemão enxergava a “era da grande indústria”, um problema se afirma com força: a circunstância de que a vivência “hostil e obcecante” (1983:30) dessa época conduziria ao declínio da experiência enquanto partilha coletiva de “uma memória e uma palavra comuns” (Gagnebin, 1987:9).

Esta perda da experiência constitui o tema central de “Experiência e pobreza” apresentando-se, também, para Benjamin, como uma das causas da raridade moderna da figura do narrador. Conforme diz o próprio autor,

Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências.

Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável. (1983:57).



Ao expor as condições que conduzem à substituição da narrativa por outras formas de comunicação, Walter Benjamin identifica certos elementos que, correlatos ao declínio da experiência, seriam característicos da existência dos homens modernos. Nesse sentido, pode ser proveitoso acompanhar com um certo vagar essa exposição, realizada em “O narrador”.

Na própria natureza da narrativa, existia, segundo o pensador, mesmo que de forma latente, uma dimensão utilitária, pois o narrador era um homem que dava conselhos, tecidos na substância de sua própria vida. Era um homem que dispunha de sabedoria, estando o seu desaparecimento intimamente relacionado com a morte da sabedoria em nosso meio. Ninguém teria mais conselhos a oferecer aos outros, e cada um quase sempre seria incapaz de narrar sua própria história, para que pudesse ouvir um aconselhamento que sugerisse uma continuidade para ela. Ter-se-ia mesmo perdido, segundo Benjamin, a capacidade de ouvir e transmitir histórias.

A retransmissão da história narrada pelo ouvinte constituiria condição essencial para a sobrevivência da narrativa. Ela disporia mesmo de qualidades que facilitariam sua conservação pela memória. Segundo diz o autor, a narrativa é destituída de análise psicológica - que seria própria do romance - e de explicações - das quais as informações seriam repletas -, circunstância que possibilita a quem ouve mergulhar o que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, transmiti-la de bom grado. Mas esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin (1983:62),

Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal.



Há, segundo afirma Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação” (1983:31). Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades. O berço do romance seria a solidão do indivíduo carente de ajuda, mas que não é capaz de narrar os seus assuntos para que possa ser aconselhado; não tem conselhos para receber, nem para oferecer. O leitor de romance, que é solitário “mais do que qualquer outro leitor” (1983:68), devora o assunto do que é lido numa busca de um calor que não sabe obter em sua própria existência. Ele busca na morte do personagem - mesmo que figurada, no final do romance - o sentido de uma vida, sentido este que não encontra no seu próprio existir. Nas palavras de Benjamin (1983:69),



... o romance não tem significado porque representa, talvez de maneira instrutiva, um destino estranho, mas porque esse destino estranho, graças à chama pela qual é devorado, nos transmite um calor que nunca podemos obter do nosso. O que arrasta o leitor para o romance é a esperança de aquecer sua vida enregelada numa morte que ele vivencia através da leitura.



Ao isolamento do indivíduo moderno, leitor de romances, corresponderia uma adequação ao mecanismo social, que é descrita por Benjamin com as palavras de Paul Valéry:

... o homem civilizado das grandes metrópoles retorna ao estado selvagem, isto é, a um estado de isolamento. O sentido de estar necessariamente em relação com os outros, a princípio continuamente reavivado pela necessidade, torna-se pouco a pouco obtuso, no funcionamento sem atritos do mecanismo social. Cada aperfeiçoamento desse mecanismo torna inúteis determinados hábitos, determinados modos de sentir (Benjamin, 1983: 43).



Do mesmo modo que o romance, grande distância da narrativa guarda a informação, que encontrou campo de florescimento no capitalismo avançado, onde passou a se constituir em importante instrumento de dominação da burguesia, mostrando-se “muito mais ameaçadora que o romance - o qual, de resto, leva, por sua vez, a uma crise” (1983: 60). Ao contrário da narrativa, que se despoja de explicações, pois dispõe de uma autoridade que dispensa a verificação imediata, a informação precisa provar sua veracidade e, com isto, impõe ao leitor explicações que a tornem verificável. Mas sua qualidade mais característica está em que seu mérito “reduz-se ao instante em que era nova. Vive apenas nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele, e, sem perda de tempo, comprometer-se com ele” (1983: 61-62). Não é guardada na memória, mas consumida instantaneamente. Do mesmo modo como surge, esvai-se no esquecimento.



A “vivência” e o ocaso da “memória involuntária”



Se, em “O narrador”, o indivíduo moderno surge, na figura do leitor de informações, como marcado pelo esquecimento, como um desmemoriado, em “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1983), Walter Benjamin apresenta uma interpretação diferente acerca do tema da memória nos tempos modernos. O que teria ocorrido não seria propriamente uma perda da memória, mas, sim, a predominância de uma determinada forma de lembrar.

O filósofo alemão se vale, em suas reflexões, de uma distinção realizada por Proust em A la recherche du temps perdu, entre “memória voluntária” e “memória involuntária”. A primeira seria aquela que estaria “à disposição da inteligência” (1983:30), sempre “pronta a responder ao apelo da atenção (1983:31), e estaria relacionada, na experiência proustiana, à “pobreza com que por muitos anos se oferecera à sua lembrança a cidade de Combray, onde, no entanto, transcorrera uma parte de sua infância” (1983: 31). Desta “memória voluntária”, ocasionada, por exemplo, pela fotografia, “se pode dizer que as informações que nos dá sobre o passado nada conservam dele” (1983:31). Segundo a leitura benjaminiana de Proust, o passado vivo nos seria trazido pela “memória involuntária”, provocada pelo contato com “qualquer objeto material (ou na sensação que tal objeto provoca em nós) que ignoramos qual possa ser. Encontrar ou não esse objeto antes de nossa morte depende unicamente do acaso”. (1983: 31).

A dependência do acaso para reevocar o passado em toda sua intensidade e, com isto, “alcançar uma imagem de si mesmo” constitui, segundo Benjamin, uma circunstância que “não é de modo algum natural” (1983: 31). As condições históricas modernas é que impedem que “os interesses interiores do homem” sejam “incorporados à sua experiência”, fazendo com que assumam um “caráter irremediavelmente privado” (1983: 31). “Onde há experiência, no sentido próprio do termo”, diz o autor, não há cisão entre a memória individual e a memória coletiva, visto que

...determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, com os do passado coletivo. Os cultos, com os seus cerimoniais, com as suas festas (sobre as quais talvez nunca se fale em Proust), realizavam continuamente a fusão entre esses dois materiais da memória. Provocavam a lembrança de épocas determinadas e continuavam como ocasião e pretexto dessas lembranças durante toda a vida. Lembrança voluntária e involuntária perdem assim sua exclusividade recíproca (Benjamin, 1983: 32).



Já no contexto moderno, em que ocorre uma “progressiva atrofia da experiência” (1983:31), o passado individual e o passado coletivo se apartam, adquirindo “exclusividade recíproca”. É esta cisão que se expressa no jornal impresso, cujo objetivo é “excluir rigorosamente os acontecimentos do contexto em que poderiam afetar a experiência do leitor” (1983: 31).

Além de separar o passado individual e o coletivo, as condições modernas de existência conduziriam, ainda, a uma ruptura da memória em “voluntária” e “involuntária”, com o predomínio da primeira sobre a segunda. A “memória voluntária” estaria ligada à esfera da “consciência desperta”, da qual dependeria - diz Benjamin baseando-se em Freud - a proteção contra os estímulos externos (chocs), sem a qual estes poderiam vir a causar efeitos traumáticos no indivíduo. Ampliando as circunstâncias em que o indivíduo se defronta com a necessidade de se proteger em relação aos chocs externos, o tempo da grande indústria teria reforçado o âmbito da consciência e da “memória voluntária”, restringindo as condições de florescimento da “memória involuntária”. A dificuldade moderna de resgate do passado, através desta última forma de lembrar, é explicada, nas palavras do próprio Benjamin, do seguinte modo:



A recepção dos chocs é facilitada por um treino do controle dos estímulos aos quais podem ser remetidos, em caso de necessidade, tanto o sonho como a lembrança. Mas normalmente, segundo a hipótese de Freud, este training diz respeito à consciência desperta, que tem sua sede em uma camada do córtex cerebral, “de tal modo queimado pela ação dos estímulos” que oferece as melhores condições para sua recepção. O fato de o choc ser captado e “aparado” assim pela consciência, daria ao acontecimento que o provoca o caráter de “vivência” em sentido estrito. E esterilizaria para a experiência poética esse acontecimento incorporando-o diretamente ao inventário da lembrança consciente (1983: 33).



Conforme vemos, o âmbito da memória involuntária é associado, aqui, à própria “experiência poética”. Mas esta passagem se mostra interessante ainda, porque, nela, nos deparamos com um conceito que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, contrapor-se-ia, na filosofia benjaminiana, ao de “experiência” (correspondente ao termo alemão Erfahrung), e seria apropriado à existência do indivíduo no “mundo capitalista moderno”: o conceito de “vivência” (Erlebnis). A “vivência”, segundo a comentadora, diria respeito à “experiência vivida, característica do indivíduo solitário” (1987:9). A passagem do próprio autor, acima citada, mostra que, para ele, a “vivência”, além de concernir à solidão do indivíduo moderno, relacionar-se-ia, ainda, à circunstância de este indivíduo se encontrar, em sua existência, continuamente defrontado com chocs que exigem a constância da “consciência desperta” capaz de apará-los, obstaculizando as possibilidades de emergência da “memória involuntária”. Segundo as palavras do filósofo alemão: “Quanto maior for a parte do choc em cada impressão isolada; quanto mais estímulos; quanto maior for o sucesso com que ela opere; e quanto menos eles penetrarem na experiência, tanto mais corresponderão ao conceito de ‘vivência’” (1983: 34).



A multidão e o choc amoroso



Através da obra poética de Baudelaire, Benjamin estabelece uma ligação entre a vivência marcada por chocs contínuos e o convívio com a multidão, no interior da qual, diz o pensador, baseando-se em Poe, o “hábito tranqüilo” cede lugar “a um toque maníaco” (1983:41). As “grandes massas” das cidades teriam tido uma presença tão forte no século XIX que se impuseram com autoridade como tema aos literatos desse século. Elas teriam estado mesmo, segundo Benjamin, no cerne do trabalho de Baudelaire, apesar de este não as ter tematizado de modo direto em suas poesias. Nas palavras do autor: “A massa é de tal modo intrínseca a Baudelaire que em vão se procura nele uma descrição da mesma. Como os seus objetos essenciais jamais aparecem, ou quase nunca, em forma de descrições. (...) A massa é o véu flutuante através do qual Baudelaire via Paris” (1983: 38).

No sentido de confirmar esta interpretação, Benjamin cita o poema A une passante, que julgamos proveitoso transcrever aqui, uma vez que, através dele, será levantado ainda um outro importante problema relacionado ao convívio na multidão:



La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil, douleur majesteuse,

Une femme passa, d'une main fastueuse

Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;



Agile et nobile, avec sa jambe de statue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,

Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,

La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.



Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté

Dont le regard m'a soudainement renaître,

Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?



Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!

Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais! (1983: 38)



Neste soneto, diz Benjamin, “Nenhum torneio de frase, nenhuma palavra lembra a multidão (...). Mas o processo apóia-se unicamente nela como a marcha do veleiro se baseia no vento (1983:38).

Por esta razão, pode o poema apresentar “o esquema de um choc”, trazendo à luz a “catástrofe” que afetou a natureza do sentimento do habitante da metrópole, “os estigmas que a vida numa grande cidade inflige ao amor”:

O êxtase do citadino é um amor não já à primeira vista, e sim à última. É uma despedida para sempre que, na poesia, coincide com o instante do enlevo. (...) O que contrai convulsivamente o corpo - crispé comme un extravagant é dito na poesia - não é a felicidade de quem é invadido pelo eros em todos os recantos do seu ser; mas antes um quê de perturbação sexual que pode surpreender o solitário. (Benjamin: 1983: 38-39).



Além de se ter engendrado na circunstância de que, na vida da grande cidade, o indivíduo se via permanentemente confrontado com a multidão, a experiência do choc teria se expandido, segundo o pensador alemão, em experiências ópticas e táteis propiciadas por uma série de inovações técnicas que, iniciadas pela invenção dos fósforos, “têm em comum o fato de substituir uma série complexa de operações por um gesto brusco” (1983: 43). Nessa série de invenções, estariam incluídos o telefone, a máquina fotográfica e o filme, no qual “a percepção intermitente afirma-se como princípio formal” (1983:43). Nesse aspecto, para Benjamin, residiria uma das rupturas efetivadas pelo cinema com relação à pintura: A pintura convida à contemplação; em sua presença as pessoas se entregam à associação de idéias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar” (1983: 25).



O “exercício” e o desejo no mundo da “vivência”



Valendo-se de O Capital, de Marx, Benjamin mostra como o ritmo a que é submetida a percepção do indivíduo na multidão, e em circunstâncias como a assistência de um filme, é o mesmo que preside o trabalho do operário na linha de montagem. Continuidade e ruptura se combinam, num processo em que “a peça a ser trabalhada entra no raio de ação do operário independentemente de sua vontade; e da mesma forma lhe é subtraída à revelia” (1983: 43). Dessa maneira, da mesma forma que como transeunte metropolitano, enquanto operário, o indivíduo se vê na condição de ter que aparar com sua consciência os chocs sucessivos impostos pelo meio exterior; neste caso, a entrada e a saída constantes da peça a ser trabalhada a cada momento.

Na existência do operário, a substituição, na época da grande indústria, da “experiência” pela “vivência” se revela ainda na circunstância de que o “exercício” cede lugar ao “aprendizado”. “Todo trabalho na máquina”, diz Marx, “exige do operário um aprendizado precoce” (citado em Benjamin, 1983:49). “Esse aprendizado”, diz Benjamin:

... é diferente do exercício. O exercício, único fator decisivo na profissão, ainda tinha vez na manufatura. Na base da manufatura, “todo ramo particular de produção vê na experiência a forma técnica que lhe é adequada, e aperfeiçoa-a lentamente”. (...) O operário não especializado é o mais profundamente degradado pelo aprendizado da máquina. O seu trabalho é impermeável à experiência. Nele o exercício não tem mais nenhum direito. (1983: 44).



As analogias parecem não cessar no ensaio benjaminiano. Elas se estabelecem, ainda, entre o operário e o jogador. Na “vanidade”, no “vazio”, no “fato de não poder terminar”, o autor vê uma relação entre o trabalho industrial e o jogo de azar, relação que se estabelece ainda através de outros elementos:

Também o seu gesto ( do operário), determinado pelo processo automático de trabalho, é representado no jogo que não acontece sem o gesto rápido de quem faz a aposta ou recolhe a carta. À partida no movimento da máquina corresponde o coup no jogo de azar. A intervenção do operário na máquina é sem relação com a precedente, exatamente porque constitui a sua reprodução exata. Toda e qualquer intervenção na máquina é tão hermeticamente separada da que a precedeu, como um coup no jogo de azar é distinto do coup imediatamente precedente. E a escravidão do assalariado a seu modo se equipara à do jogador. O trabalho de um e do outro é igualmente independente de todo conteúdo. (Benjamin, 1983: 45).



Através da analogia entre o trabalho fabril e o jogo, Benjamin traz à luz mais uma dimensão da “atrofia da experiência”: o desaparecimento do desejo. Está certo que o jogador pelo menos quer vencer, mas isto, para o autor,



... não pode ser definido como um desejo no sentido próprio da palavra. No íntimo, o que o absorve é talvez avidez, talvez uma sombria decisão. Em todo caso, encontra-se num estado de alma em que não pode valer-se da experiência. Ao contrário, o desejo pertence às ordens da experiência (1983: 46).



O desejo, ao formular-se, concentra em si três dimensões temporais, uma vez que, a fim de projetar o futuro no presente, obriga a remontar ao passado:

Na vida, quanto mais cedo se formula um desejo, tanto maiores são as suas perspectivas de realização. Quanto mais um desejo remonta no tempo, tanto mais se pode esperar a sua concretização. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência, é o que o preenche e articula. Por isso, o desejo realizado é a coroa destinada à experiência (Benjamin, 1983: 46).



Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”, antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que, como o jogador e o trabalhador assalariado, se dobram sob um eterno presente, pois têm que “recomeçar sempre de novo”, não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram” (Benjamin, 1983: 46).



O declínio da “aura”



Le Printemps adorable a perdu son odeur! ( 1983: 50)



Neste verso de Baudelaire, Benjamin vê uma admissão, por parte do poeta francês, da impossibilidade, no mundo moderno, de um tempo diferente da temporalidade vazia de conteúdo acima mencionada, tempo que se poderia concretizar através da memória involuntária, muitas vezes ocasionada pela sensação de um odor. Essa memória ainda guarda alguma relação com a experiência, que as condições modernas de existência substituem pela vivência, dificultando, conforme vimos , a emergência daquela forma de lembrar, promovendo a memória voluntária. Não existe consolo para o homem moderno, pois não o há “para quem já não pode fazer mais nenhuma experiência” (Benjamin, 1983: 50). Conforme o verso de Baudelaire, perdeu-se o odor de uma “primavera adorável”.

Conduzindo ao declínio da memória involuntária, a ruína da experiência leva ao mesmo tempo, à decadência da aura, uma vez que, conforme mostra Benjamin, os três termos se encontram estreitamente vinculados: “Definindo-se as representações radicais na mémoire involontaire tendentes a reunir-se em torno de um objeto sensível, como a aura desse objeto, a aura ao redor de um objeto sensível corresponde exatamente à experiência que se deposita como exercício num objeto de uso” (1983: 51).

Uma estreita relação entre memória involuntária e a aura dos objetos é estabelecida ainda quando Benjamin considera que as lembranças trazidas involuntariamente “são irrepetíveis e fogem à lembrança que tenta arquivá-las” (1983: 53; grifo nosso). Por esta razão, elas corresponderiam ao conceito de aura, tal como posto em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, isto é, “a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja” (1983: 9; grifos nossos).

Além de ser definida por Benjamin em termos de unicidade e distância, a aura é concernente, em seu pensamento, a uma percepção que atribui, ao inanimado e à natureza, uma capacidade humana que consiste na satisfação da expectativa contida em cada olhar: a de ser correspondido. Conforme explica o autor:

... está implícita no olhar a expectativa de ser correspondido por aquilo a que se oferece. Se tal expectativa ( que pode associar-se no pensamento tanto a um olhar intencional de atenção como a um olhar no sentido literal da palavra) é satisfeita, o olhar consegue na sua plenitude a experiência da aura. (...) A experiência da aura repousa portanto na transferência de uma forma de reação normal na sociedade humana para a relação do inanimado e da natureza com o homem. Quem é olhado ou se julga olhado levanta os olhos. Perceber a aura de uma coisa significa dotá-la da capacidade de olhar. Isto é confirmado pelas descobertas da mémoire involontaire (1983: 52-53).



Concebendo desta forma a “experiência da aura”, Benjamin pode responsabilizar pela sua decadência a memória, cujas imagens se baseiam na reprodução técnica, como as da fotografia. Para que esta possa ser feita, o olhar humano se dirige ao aparelho que, entretanto, não o retribui, “... o que na daguerreotipia devia ser sentido como desumano, diria mesmo mortal, era o olhar dirigido (além do mais, longamente) ao aparelho, enquanto este acolhe a imagem do homem sem retribuir-lhe um olhar” (1983: 52).

Com as técnicas de reprodução, a perda da aura não atinge apenas os objetos e as imagens da memória, afetando também as obras de arte. Se a obra de arte sempre foi, “por princípio, suscetível de reprodução”, o progresso das técnicas de reprodutibilidade nos séculos XIX e XX as elevou a tal nível que mudou visceralmente a percepção das obras. O original perde sua autoridade frente às cópias, ao se perder de vista a importância da autenticidade da obra de arte, isto é, da “unidade de sua presença no próprio local onde se encontra” (1983:7). Deste modo, “o que é atingido na obra de arte é a sua aura” (1983:8).

O declínio da aura, no contexto da reprodutibilidade técnica, atinge ainda a natureza, abrangendo também os próprios homens. Walter Benjamin afirma que, ao contrário do que ocorre com o ator teatral, que atua diante do público dotado de sua aura, o intérprete do filme dela é privado; tem sua atuação mediada por um aparelho, circunstância que o deixa constantemente submetido a uma experiência de teste: seja no momento em que são feitas as tomadas, seja quando é realizada a montagem, ou quando sua performance chega ao público que, não tendo seu julgamento “perturbado por qualquer contato pessoal com o intérprete” (1983:15), pode tomar a atitude de quem examina um teste. Nas palavras do autor,



... pela primeira vez, e em decorrência da obra do cinema, o homem deve agir com toda a sua personalidade viva, mas privado da aura. Pois sua aura depende de seu hic et nunc. Ela não sofre nenhuma reprodução. No teatro, a aura de um Macbeth é inseparável da aura do ator que desempenha esse papel tal como o sente o público vivo. A tomada no estúdio tem a capacidade de substituir o público pelo aparelho. A aura dos intérpretes desaparece necessariamente e, com ela, a das personagens que eles representam (1983: 16).



A posição de Benjamin: pesar e esperança



Com a exposição que fizemos, esperamos ter traçado um painel suficientemente amplo das questões que, nos textos selecionados, afloram da leitura benjaminiana da época da grande indústria. Conforme é possível notar, nesses textos, Walter Benjamin não adota uma postura de imparcialidade frente a tais questões: seu olhar não está isento de uma apreciação e de um posicionamento com relação àquilo que vê. É a uma tentativa de identificação deste posicionamento que nos voltamos agora.

Por entre as questões que anteriormente expusemos, perpassa, conforme já afirmamos, um mesmo problema: o declínio da experiência sofrido pelos sujeitos nas condições modernas de existência. Podemos notar, em várias passagens, um pesar, um sentimento de “perda dolorosa” (Gagnebin, 1987: 12) do filósofo alemão com relação a esta decadência. Este pesar se faz notar especialmente nas perguntas feitas no início de “Experiência e pobreza”, após uma referência às experiências que, “de modo benevolente ou ameaçador”, sempre foram antes transmitidas à juventude:

Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (Benjamin, 1987: 114).



O tom melancólico destas palavras, escritas em 1933, se repete em todo o ensaio “O narrador”, de 1936, sendo especialmente visível em passagens como aquela em que a influência da informação no destino histórico da narrativa é tida como “ameaçadora”. No capitalismo avançado, diz Benjamin, evidencia-se que uma nova forma de comunicação “... se antepõe à narrativa de um jeito não menos estranho, mas muito mais ameaçador do que o romance - ao qual, de resto, leva, por sua vez, a uma crise. Esta nova forma comunicação é a informação (1983: 60) (grifo nosso).

Correlato à questão do empobrecimento da experiência se mostra, conforme nota Jeanne Marie Gagnebin, fundamentando-se em uma carta do próprio Benjamin a Adorno, o problema da perda da aura (1987:11-12), amplamente discutido pelo filósofo alemão em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. Também neste ensaio é possível enxergar uma perspectiva pesarosa. As técnicas de reprodução, ao multiplicar as cópias dos objetos (prosaicos ou de arte), transformando o “evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas”, e conferindo-lhe “atualidade permanente”, conduzem “a um abalo da tradição, que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade” (1983: 8; grifo nosso). Aqueles que, como Abel Gance, teriam saudado o cinema “com entusiasmo”, teriam convidado a humanidade, “sem saber, a uma liqüidação geral” (1983: 8; grifo nosso).

Ao empobrecimento da experiência se vinculam, ainda, os múltiplos problemas levantados em “Sobre alguns temas em Baudelaire”. No tocante a eles, Walter Benjamin adota, em certas passagens, um ponto de vista extremamente negativo. Vejamos três exemplos. Ao se referir à modificação que a “vivência” no interior da multidão acarretou na natureza do sentimento amoroso do citadino, o autor o faz como a uma “catástrofe” (1983: 38). Quando compara Londres e Paris, dizendo que esta última cidade, ao contrário da primeira, ainda reservava espaço para o flâneur, Benjamin afirma que isto podia ocorrer porque então (primeira metade do século XIX) Paris conservava “alguns aspectos dos bons tempos antigos” (1983: 38; grifo nosso). No momento em que considera a substituição do “exercício” pelo “aprendizado” na existência do operário fabril não especializado, o autor a ela se refere como “degradação profunda” (1983: 44).

A posição do autor, entretanto, não se esgota nesta visão pesarosa. A par do ponto de vista negativo podemos notar, nos textos aqui abordados, um olhar esperançoso de Benjamin para o tempo da grande indústria. Em “Experiência e pobreza”, afirma que a pobreza de experiência se torna universal, fazendo surgir a barbárie, mas que esta barbárie deve ser entendida de maneira positiva:

Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de um tábula rasa. (...) (1987: 116).



Nesses grandes homens, entre os quais se encontrariam Einstein, os cubistas, Paul Klee, Brecht, Adolf Loos e Paul Scheerbart, Benjamin exalta, deixando ver sua própria perspectiva, a característica de “uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século”, o fato de terem se dirigido “ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época” (1987: 116).

Com relação às técnicas de reprodução da obra de arte, ao mesmo tempo que mereceram do pensador alemão a apreciação que já mencionamos, são vistas também de uma perspectiva bastante otimista. Benjamin acreditava que, uma vez passível de reprodução infinita, a obra de arte poderia deixar de ter apenas uma “função artística”, para fundar-se na prática política. Nas palavras do autor: “... desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de praxis: a política” (1983: 11).

Apostando no “progressismo” do público do cinema, que “não separa a crítica da fruição”, o autor julgava possível, através dessa nova forma de arte, uma mobilização das “massas” para “novas tarefas” (1983: 26), numa atitude de politização da arte que seria a resposta do comunismo à “estetização da política, tal como a pratica o fascismo” (1983: 28), trazendo a possibilidade de “renovação das estruturas sociais” (Arantes, 1983: XII) 2.

Combinando o pesar com a esperança e o otimismo, Walter Benjamin revela uma ambigüidade em sua apreciação dos problemas colocados aos homens pela vida da época da grande indústria. Isto não significa, entretanto, nenhum demérito para o pensador. Ele mesmo exaltou a ambivalência como algo grandioso em Fleurs du mal (1983: 49). Pensamos que , no tocante às questões apresentadas neste trabalho, poderíamos dirigir ao filósofo alemão as mesmas palavras com que descreveu a ambigüidade de Baudelaire com relação à multidão: “Ele torna-se o seu cúmplice e quase no mesmo instante dela se aparta. Mistura-se generosamente com ela para jogá-la de repente ao nada com um olhar de desprezo” (1983: 41).





Bibliografia



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____. O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. Trad. M. Carone. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

____. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Trad. de José Lino Grünnewald. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

____. Sobre alguns temas em Baudelaire. Trad. de E. A. Cabral e J. B. de Oliveira Damião. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, W.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

GAGNEBIN, J. M. Prefácio - Walter Benjamin ou a história aberta. In: Obras escolhidas - I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

________. Walter Benjamin - Os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1981.

KOTHE, F. R. Poesia e proletariado: ruínas e rumos da história. In: ________, org. Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985.



Notas



1 - Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM)



2 - Esta postura otimista de Benjamin, segundo diz Paulo Arantes, teria sido objeto de severa crítica de Adorno, que teria chegado a qualificá-la como ingênua (1983:XII).





Publicado em Revista Diálogos, DHI/UEM, 02: 65-79,1998.

(FONTE:http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/eide.html)

Adorno e Benjamin na “encruzilhada de magia e positivismo”

Marcos Nobre



No período que vai do final do ano de 1934 até 1940, a correspondência entre Adorno e Benjamin se intensifica sobremaneira. E, a considerarmos plausíveis as conjeturas de Habermas, isto não se deve apenas à dificuldade das circunstâncias, desde o exílio imposto pelo nazismo até as dificuldades econômicas daí decorrentes: “O leitor será testemunha de um processo estimulante da aproximação entre pessoas que dificilmente poderiam se aproximar de outra maneira senão por esse caminho literário mediado. A cada vez asseguram mutuamente os interlocutores o desejo do encontro pessoal e da conversa direta. Mas a série de visitas continuadamente adiadas e impedidas – Adorno fez apenas duas curtas viagens a Paris – espelha não somente a adversidade das circunstâncias; ela segreda também a preferência não confessada pelo desvio da expressão escrita. A coerção formal do medium epistolar – é a impressão que se tem – protege um Benjamin reservado das contingências e inconvenientes do contato imediato e, ao mesmo tempo, concede a um severo Adorno a liberdade maior da expressão crítica”1 (Habermas 6, p. 125).

De fato, as discussões travadas por carta são de importância fundamental para que possamos compreender as divergências crescentes entre Adorno e Benjamin. Na correspondência, Adorno aponta frequentemente para um “programa filosófico comum”, cujas bases estão dadas no ensaio de Benjamin “Sobre As Afinidades Eletivas de Goethe” e no livro Origem do drama barroco alemão, mas também no projeto das “Passagens” na versão de 1929, fragmentos conhecidos como “Pariser Passagen II”. As divergências passam a ser explícitas a partir da carta de Adorno a Benjamin de 6/11/1934, no qual se diz textualmente que as divergências ali expostas surgem “pela primeira vez desde que entramos em contato” (Adorno e Benjamin 3, pp. 72-73).

É tese central deste artigo que só os escritos de Benjamin da década de 20 podem fornecer nitidez e consistência ao debate teórico que travam Adorno e o próprio Benjamin na década de 30, pois, do ponto de vista de Adorno, a produção de Benjamin da década de 30 apresentaria soluções arbitrárias para o conjunto de problemas postos pelos escritos da década anterior. Adorno não cessa de confrontar criticamente as soluções peculiarmente materialistas dos escritos de Benjamin dos anos 30 com o estoque de problemas comuns circunscritos pela produção da década de 20 e que seria por eles partilhado.

Nesse sentido, a produção tanto de Adorno como de Benjamin na década de 30 é aqui entendida como uma sucessão de tentativas de responder de um ponto de vista materialista aos problemas postos na obra de juventude de Benjamin. Do ponto de vista de Adorno (que é também o deste artigo), Benjamin não teria alcançado um materialismo à altura dos problemas postos; mas, também: o próprio Adorno reconhece sucessivas vezes a insuficiência de suas próprias tentativas nesse sentido. Os textos de Adorno desse período, ainda que importantes e profundamente marcados pelos desenvolvimentos de Benjamin, ainda não têm um grau de elaboração teórica suficiente para que possam ser considerados contrapontos de mesma estatura aos textos deste último2. E a teoria que Adorno cobra repetidas vezes de Benjamin é a que ele mesmo está buscando sem ter, contudo, por essa época, conseguido dar-lhe contornos definidos.

A perspectiva deste artigo, entretanto, não será a de reconstruir o “programa filosófico comum” dado pelos escritos de Benjamin da década de 20, mas simplesmente a de observar os “desvios” desse “padrão” que permanecerá pressuposto. Além disso, pretendo me restringir ao exame da correspondência, deixando em segundo plano as referências aos textos produzidos ou publicados no período. Comecemos por 1934. Em carta de 17 de dezembro desse ano, Adorno faz considerações sobre o texto de Benjamin sobre Kafka (cf. Benjamin 4, vol. II-1, pp. 409-438). Apesar de Adorno escrever que “nossa concordância nos pontos filosóficos centrais nunca veio à consciência tão completamente quanto aqui” (Adorno e Benjamin 3, p. 90), as críticas dirigidas ao ensaio de Benjamin atingem um núcleo fundamental da argumentação. E, o que é ainda mais importante no nosso caso, as críticas a Benjamin são simultaneamente autocríticas frente ao Kierkegaard: “a anamnese – ou o ‘olvido’ – da história originária em Kafka é interpretada no seu trabalho em sentido essencialmente arcaico e não no sentido transdialetizado (durchdialektisiert): com isso, o trabalho cai justamente na entrada das Passagens3. Neste ponto, sou o último a poder julgar, pois sei muito bem que a mesma recaída, a mesma articulação insuficiente do conceito de mito deve-me ser imputada no Kierkegaard, em que tal conceito foi suprimido (aufgehoben) como construção lógica, mas não concretamente” (idem, p. 92).

A “transdialetização” apontada por Adorno como insuficiente reaparecerá em sua crítica ao ensaio de Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (carta de 18/03/1936, idem, p. 168 e segs.). O que esta expressão embute é a diferença entre a mitologia “arcaica” e a “moderna”. Neste sentido, é importante a referência à carta de Adorno a Kracauer de 21/11/1932, onde se lê: “Benjamin esteve aqui. Ele leu para mim uma grande parte do novo livro Berliner Kindheit um 1900. Acho formidável e totalmente novo; mesmo frente a Einbahnstrasse um grande progresso, na medida em que a mitologia arcaica é nele efetivamente liquidada e o mítico é buscado somente no mais atual – no ‘moderno’” (apud Adorno e Benjamin 3, p. 31, nota). A partir da leitura dessa carta, podemos perceber que Adorno não apenas militava pela exclusão de um conceito “arcaico” de mito, como via em Benjamin um movimento na mesma direção. De fato, na aula inaugural de 1931, Adorno fazia já a defesa das “imagens históricas” nos seguintes termos: “Elas não se encontram prontas organicamente na história; para descobri-las, não se necessita de nenhuma visão e de nenhuma intuição; elas não são deidades históricas mágicas a serem aceitas e veneradas. Antes pelo contrário: elas têm de ser produzidas pelo homem e legitimam-se unicamente pelo fato de que a efetividade, em flagrante evidência, organiza-se em torno delas. Neste ponto, elas se distinguem de maneira central das imagens arcaicas, das proto-imagens (Urbilder) míticas, tal como a psicanálise as encontra, tal como Klages espera preservá-las como categorias de nosso conhecimento” (Adorno 1, vol. I, p. 341).

A referência à “psicanálise” aqui não diz respeito a Freud, mas a Jung e aos “arquétipos” (Urbilder). Não surpreende, portanto, que Adorno vá discordar, em 1934, da relação estabelecida por Benjamin entre o “sonho do coletivo” e o “inconsciente coletivo” de Jung. Adorno pretende conferir “dignidade sistemática” ao procedimento de Benjamin de sempre e decididamente se distanciar daquilo que parecia estar cada vez mais próximo de seus desenvolvimentos: “de Gundolf nas Afinidades eletivas, não menos do que das apreciações do Barroco, desde o Expressionismo até Hausenstein e Cysarz (...). Somente neste sentido (...) posso imaginar a relação com Jung e Klages (...). Ou, para ser mais preciso: exatamente aqui se encontra a linha divisória entre imagens arcaicas e imagens dialéticas, ou, como formulei uma vez contra Brecht, a linha divisória de uma doutrina das idéias materialista” (Adorno e Benjamin 3, pp. 83-84). A oposição de Adorno a uma presença positiva de Jung na Obra das passagens percorre toda a correspondência da década de 30 e vai culminar com a “sugestão” da direção da Zeitschrift für Sozialforschung para que Benjamin deixe de lado o seu projeto de um ensaio sobre Jung e se concentre no ensaio sobre Baudelaire (carta de Adorno a Benjamin de 13/09/1937, idem, p. 272).

Pode-se dizer que Adorno teme que qualquer referência positiva a um conceito arcaico de mito signifique uma imediata recaída na mitologia. Desde o artigo de juventude de Benjamin “Sobre o programa da filosofia vindoura”, o problema que se colocava era o de uma superação do mito sem uma correspondente regressão a um estágio pré-kantiano, era o de uma crítica do idealismo que não se colocava aquém do horizonte da modernidade. É essa posição do problema que Adorno teme estar sendo ameaçada. E, mais uma vez, é Habermas quem nos dá a melhor formulação: “Benjamin queria fazer uma dupla decifração nos traços arcaicos da modernidade, coagulados em ‘imagens dialéticas’: tanto a repetição destrutiva da antiga desgraça como também uma força originária dirigida contra a modernidade destruidora, a qual poderia reverter a desgraça. Este segundo momento da salvação e de recolhimento de um originário a ser apenas desatado é, para Adorno, suspeito. Para ele, o arcaico é produzido historicamente sem resto; o que a história fez emudecer e mascarou como ‘pré-histórico’ irradia uma falsa magia” (Habermas 6, p. 127).

Este é precisamente o tema da carta de Adorno a Benjamin de 2-4 e 5/8/1935, um longo comentário ao “Exposé” de “Paris, capital do século XIX”4. O ponto central da argumentação de Adorno está referido à seguinte passagem do texto de Benjamin, aberta pela citação de Michelet “Chaque époque rêve la suivante”: “À forma de um meio de construção que, no começo, ainda é dominada pela do modo antigo (Marx), correspondem imagens na consciência coletiva em que o novo se interpenetra com o antigo. Essas imagens são imagens do desejo e, nelas, a coletividade procura tanto superar quanto transfigurar as carências do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção. Além disso, nessas imagens desiderativas aparece a enfática aspiração de se distinguir do antiquado – mas isto quer dizer: do passado recente. Tais tendências fazem retroagir até o passado remoto a fantasia imagética impulsionada pelo novo. No sonho, em que esta última comparece conjugada a elementos da proto-história, ou seja, a elementos de uma sociedade sem classes. Depositadas no inconsciente da coletividade, tais experiências, interpenetradas pelo novo, geram a utopia que deixa o seu rastro em mil configurações da vida, desde construções duradouras até modas fugazes” (Benjamin 5, p. 32).

Para Adorno, Benjamin abandona, nesse texto, a antiga concepção de “imagem dialética” que seria compartilhada por ambos, sendo que se refere em especial ao esboço de 1929 do Trabalho das passagens, na versão oral e parcial em que – segundo consta – conhecia o texto. O novo e o velho (ou antigo) estão organizados agora segundo o ponto de fuga utópico da sociedade sem classes. Prossegue Adorno, apoiando-se em Origem do drama barroco alemão: “Com isto, o arcaico passa a ser um complemento adicional em lugar de ser o próprio ‘novo’; ele foi, portanto, desdialetizado. Ao mesmo tempo, entretanto, e de maneira igualmente não dialética, a imagem sem classes é datada retroativamente no mito, em lugar (...) de se tornar transparente verdadeiramente como fantasmagoria infernal. Assim, a categoria sob a qual a época arcaica é absorvida na modernidade me parece ser menos a época de ouro do que a catástrofe (...). E precisamente aqui sei que estou em acordo com a passagem mais sagaz do livro sobre o drama barroco” (Adorno e Benjamin 3, p. 141).

Mais uma vez, Adorno confronta os escritos de Benjamin da década de 20 com os da década de 30, apontando para uma superioridade do Drama barroco e do ensaio sobre As Afinidades Eletivas . O que não significa, entretanto, que Adorno esteja pretendendo dizer que Benjamin recorra a um estado originário em que reinaria a comunhão de sujeito e objeto nem, tampouco, de uma indistinção originária entre os dois termos. Trata-se antes da destruição real, material, no interior da sociedade capitalista, da consciência empírica e de seu correlato de objeto – para falarmos nos termos de “Sobre o programa da filosofia vindoura” –, destruição conservada e sublimada na “consciência coletiva”. Vejamos este ponto mais de perto.

Na passagem para as obras de maturidade, para a chamada “fase materialista” do pensamento de Benjamin, a possibilidade da crítica está dada pela perspectiva da revolução redentora, o que significa ao mesmo tempo que o desenvolvimento das forças produtivas enseja, fornece as condições materiais para a destruição efetiva do mito. Como escreve Benjamin em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”: “Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da produção capitalista e as apresentou de tal forma que delas resultou aquilo que se poderia esperar futuramente do capitalismo. Resultou que se poderia esperar do capitalismo não apenas uma crescente e intensa exploração dos proletários, mas também, por fim, a produção de condições que tornam possível a sua própria supressão” (Benjamin 5, p. 165). Mas as condições para a supressão efetiva do modo de produção capitalista são razão necessária, mas não suficiente: é preciso que elas sejam utilizadas, orientadas num sentido revolucionário. Pensando elementos da superestrutura, como o controle da massa sobre o desempenho do intérprete de cinema, por exemplo, Benjamin afirma que “o capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias desse controle” (idem, p. 180). Isto pressupõe, por sua vez, o diagnóstico de que a obra de arte não está mais fundada no ritual, mas na práxis política (idem, pp. 170-172), e a esperança concomitante de que o público, separado da arte depois de Baudelaire, venha a reconciliar-se com ela no cinema: “A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte. Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin” (idem, p. 187).

Se o problema, portanto, não se põe mais literalmente na forma do par antitético mito e verdade – como se pode dizer da obra de Benjamin até a década de 20 –, é porque a própria verdade está ancorada na práxis política. (Daí a importância da epígrafe de Madame de Duras na “primeira versão” do ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”: “Le vrai est ce qu’il peut; le faux est ce qu’il veut”). Ocorre que, para Adorno, a solução peculiarmente materialista dos problemas postos na obra de juventude não resolvem de fato tais problemas. Ou melhor, só os resolvem ao preço de determinados pressupostos, no limite, mágicos: “montagem” como procedimento crítico5, “valor de uso” como categoria fundamental de crítica do capitalismo, e o próprio “inconsciente coletivo”.

Já pudemos acompanhar a crítica de Adorno ao uso da categoria de “consciência coletiva” e seus correlatos6. Este desenvolvimento benjaminiano evidencia, do ponto de vista de Adorno, não apenas uma solução arbitrária para os problemas postos pela produção da década de 20, mas revela também uma profunda incompreensão da sociedade capitalista e de sua categoria mais elementar, a mercadoria. A secreta comunicação (não se trata nunca de uma pressuposição) do presente com a proto-história cristalizada na consciência coletiva implica imediatamente uma primazia do valor de uso sobre o valor de troca. Ocorre que, como escreve Adorno, “o mero conceito de valor de uso de maneira alguma basta para criticar o caráter de mercadoria”. E Adorno dirige esta objeção não apenas a Benjamin, mas identifica o seu foco: o círculo de Brecht (cf. Adorno e Benjamin 3, p. 143). Desta forma, o uso da categoria de mercadoria se torna abstrato, tudo se passa como se ela tivesse surgido “‘pela primeira vez’ enquanto tal no século XIX”. Esta objeção é, simultaneamente, autocrítica: “(diga-se de passagem, que a mesma objeção vale contra o Intérieur e a sociologia da interioridade no Kierkegaard e que tudo o que aporto contra o seu “Exposé” digo também contra meu próprio trabalho antigo)” (idem, pp. 147-148)7. Em suma, “compreender a forma mercadoria como imagem dialética quer dizer também compreendê-la como motivo de seu declínio e de sua ‘superação’ (Aufhebung) em lugar de mera regressão ao mais antigo” (idem, p. 142).

Apesar das aspas em “Aufhebung”, a tentação parece grande de entender a crítica de Adorno a Benjamin como uma variante da posição hegelomarxista do Instituto de Pesquisa Social. Nada até o presente momento nos levaria a compreendê-la assim, muito pelo contrário. Mas assim tem sido interpretada a discussão entre Adorno e Benjamin na década de 30 e parece o momento adequado para introduzir-lhe as correções necessárias.

Em primeiro lugar, não parece que as palavras de Petazzi, datadas de 1979, tenham recebido a atenção que merecem: “Frente à constatação indubitável de que Adorno se diferencia em numerosos aspectos, essenciais até, de Marx, difundiu-se a tendência (...) de buscar a origem destas diferenças teóricas numa presença de elementos hegelianos. A coisa funciona, naturalmente, porque os próprios textos adornianos oferecem mais que alusões e pontos de apoio a esta interpretação, repletos que são de referências a Hegel; ou, pelo menos, os textos habitualmente lidos, ou seja, aqueles posteriores à emigração americana. Se, de fato, consideramos aqueles anteriores a 1940, a operação não funciona, ou, pelo menos, não funciona na mesma medida: excetuando- se algumas páginas no Kierkegaard, a escassez ou a ausência de referências explícitas ou implícitas a Hegel é a regra” (Petazzi 8, p. 138). O próprio Adorno, de resto, em carta a Benjamin de 02/8/1938, diz que a Lógica de Hegel, “hoje”, “fala-me em todas as suas partes” (Adorno e Benjamin 3, pp. 345-346).



No que se refere a Marx, a situação é ainda mais complicada. Tomemos dois exemplos. No final de 1934, Adorno informa a Benjamin que está escrevendo um ensaio sobre o livro de Mannheim Mensch und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus, e descreve o ensaio como “o mais rigoroso trabalho marxista que empreendi até agora” (idem, p. 76). O trabalho se destinava à publicação na revista do Instituto, mas encontra desde o início a oposição de Horkheimer8. Em outubro de 1937, quando Adorno termina a versão final do ensaio, ele escreve a Benjamin que o trabalho recebeu “uma série ainda maior de modificações que não me agradam nem um pouco. Apresentei imediatamente contra-sugestões, mas ainda não sei com que grau de êxito” (idem, p. 300). Em março de 1938, Adorno afirma que o ensaio está definitivamente “enterrado” (cf. idem, p. 313).

Um exemplo ainda mais contundente das diferenças de Adorno com respeito à posição hegemônica do Instituto (representada principalmente por Horkheimer e por Pollock) pode ser retirado das discussões em torno do ensaio de Adorno “Sobre o Jazz”, publicado na Zeitschrift em 1937 (sob o pseudônimo de Hektor Rottweiler). Em carta de 26/05/1936, Adorno comenta duas correções que foram feitas ao seu texto pela redação da revista. Foram suprimidas as frases: “a mais-valia se impõe contra o empresário” e o amador “é o caso exemplar dialético do anormal que se torna porta-voz do espírito objetivo normal, porque este é ele mesmo anormal” (Horkheimer 7, vol. XV, p. 541, notas 2 e 3 do editor). Em carta de 15/06/1936, Horkheimer comunica a Adorno que mais alterações foram introduzidas no ensaio e apresenta a opinião de Pollock: “Ele é de opinião de que o conceito de ‘valor de troca’ pertence a um outro nível teórico que não aquele em que a palavra é empregada no ensaio. A passagem poderia dar, por conseguinte, a impressão do mero ‘coquetear’ com a terminologia marxista, o que deveria ser sempre evitado”9 (idem, p. 561).

Seria possível argumentar que Adorno está fazendo um uso diverso das categorias marxistas, mas não só é difícil fazer a reconstrução desse procedimento, como, principalmente, não é possível atribuir-lhe ortodoxia de qualquer matiz. Por outro lado, o fato de Adorno debruçar-se, nos anos 30, sobre Hegel indica, é certo, que ele não mais repetirá a bravata de 1931, para a qual a tese da ratio autônoma do idealismo “se dissolveu” (Adorno 1, vol. I, p. 326). Mas não indica de nenhuma maneira que ele esteja se filiando a uma variante da versão lukácsiana do marxismo ortodoxo, tal como podemos dizer do Horkheimer desse período10. Resta-nos ainda, entretanto, a tarefa de examinar as discussões travadas por Adorno e Benjamin em torno do texto deste último, “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”, que foi recusado para publicação pela redação da revista do Instituto. Pois na carta de 10/11/1938 surge a objeção adorniana que costuma passar por hegelo-marxista tout court: “julgo infeliz, do ponto de vista do método, reverter ‘materialisticamente’ traços singulares óbvios do âmbito da superestrutura, colocando-os em relação, de maneira imediata e até mesmo causal, com traços aparentados da infraestrutura. A determinação materialista de elementos culturais só é possível mediatamente através do processo global” (Adorno e Benjamin 3 , p. 367).

Antes de mais nada, é importante notar que Horkheimer já havia dirigido objeção semelhante a Benjamin quando da discussão em torno do ensaio

“Paris, capital do século XIX” – mais de três anos antes, portanto. Escreveu Horkheimer em 18/07/1935 a Benjamin: “O Sr. recorre ao momento econômico não tanto na figura do processo global e de suas tendências quanto em pormenores determinados. Neste caso, entretanto, eles têm de ter uma significação particularmente conclusiva” (Horkheimer 7, vol. XV, p. 379). No mesmo período, Adorno intercede pela publicação do texto, embora apresente a Horkheimer suas discordâncias, particularmente no que diz respeito ao conceito da “consciência coletiva” (idem, pp. 360-361). A questão da “mediação” só irá surgir na correspondência com Horkheimer numa carta do final do ano de 1935, na qual Adorno se exprime de maneira bastante enigmática e, com certeza, dificilmente assimilável a qualquer ortodoxia marxista conhecida: “acredito ter efetivamente avançado de maneira decisiva no problema mesmo da mediação, agora em um modelo concreto, i.e., acredito ter liquidado numa passagem (embora muito especial e particular) a alternativa entre uma vaga analogização à la Borkenau e uma causação hipotética de outro lado. É como um ovo de Colombo: a mediação é, a saber, provavelmente, mediação alguma, mas é uma identidade. Ideologias não são enigmaticamente ‘dependentes’ da infra-estrutura; elas são a própria infra-estrutura como ‘fenômeno’ (Erscheinung) (...). Não apenas a consciência de si hegeliana é ideologia, mas a ideologia é a consciência de si hegeliana – como falsa consciência necessária” (idem, pp. 428-429). É inegável que, no período de 1935 a 1938, cresceu em muito o intercâmbio intelectual de Horkheimer e Adorno, intercâmbio que irá certamente se acentuar a partir da emigração de Adorno para os EUA em fevereiro de 1938. Mas é difícil, a partir dos textos examinados até agora, afirmar que este maior intercâmbio intelectual signifique uma virada hegelianizante no pensamento adorniano. Vamos ver como isto se dá nas discussões com Benjamin em 1938. A carta de novembro de 1938 a Benjamin retoma as objeções de 193511.

A carta lembra o perigo de uma recaída na mitologia, na medida em que o arcaico não teria sido inteiramente liquidado, conservando ainda um potencial crítico frente à modernidade destruidora: “a liquidação, em sua verdadeira profundidade, só pode dar certo quando a fantasmagoria funciona como categoria histórico-filosófica objetiva e não como ‘visão’ (Ansicht) de caracteres sociais”. Isto acarreta por sua vez, tal como nas objeções de 1935, uma deshistoricização do objeto, vale dizer, uma perda daquilo que lhe é específico: “em lugar da proto-história do século dezenove surge a proto-história no século dezenove” (Adorno e Benjamin 3, p. 366).

Com isso, Adorno passa a considerar a relação do trabalho de Benjamin com o marxismo. Significativamente, em todos os momentos em que este tema é tratado, Adorno menciona a concordância de Horkheimer com as observações que faz. Ele diz que vai se expressar, já que o tema é marxismo, “tão simples e hegelianamente” quanto possível: “A menos que eu muito me engane, esta dialética tem uma falha: a mediação. Domina amplamente a tendência a referir imediatamente os conteúdos de Baudelaire a traços aparentados da história social de seu tempo e, ainda mais, sempre que possível a traços de tipo econômico” (idem, pp. 366-367). E Adorno não tem outro nome para a mediação que “a teoria” de que o trabalho de Benjamin faz economia. Sintetizando: “Pode-se formulá-lo também assim: o motivo teológico de chamar as coisas pelo nome inverte-se tendencialmente na apresentação deslumbrada da mera facticidade. Se se quisesse falar de maneira muito drástica, poder-se-ia dizer que o trabalho se postou na encruzilhada de magia e positivismo. Este lugar é enfeitiçado. Só a teoria permitiria quebrar o encanto: a sua própria, a boa, desabusada teoria especulativa” (idem, p. 368).

Que teoria Adorno espera (e exige) de Benjamin?12 Com efeito, nada menos do que aquela anunciada e prometida em 1929: Adorno reafirma na carta a sua “ortodoxia das Passagens”. O texto prossegue: “A sua solidariedade com o Instituto, com a qual ninguém pode se alegrar mais do que eu, levou-o a pagar ao marxismo tributos que não fazem jus nem ao Sr. nem ao marxismo. Não o fazem ao marxismo, porque a mediação através do processo social global é deixada de lado e à enumeração material é atribuído supersticiosamente um poder de iluminação que nunca foi propriedade da referência pragmática, mas somente da construção teórica. Não ao Sr. em sua substância peculiar, na medida em que o Sr. se proibiu os seus mais argutos e frutíferos pensamentos por um tipo de censura prévia segundo categorias materialistas (que não coincidem de forma alguma com as marxistas)”13 (idem, pp. 369-370).

Adorno de maneira alguma está exigindo de Benjamin fidelidade à teoria marxista. O que ele está dizendo é: em pretendendo ser marxista, são estas as exigências a serem cumpridas. Adorno sabe que Benjamin não pode nem quer cumprir exigências como essas. Adorno, em seus trabalhos do período, também não as cumpre, como notou, com espanto, Martin Zenck a propósito do ensaio sobre Wagner publicado em 1939 na Zeitschrift für Sozialforschung14. A acusação de “tirania” que Adorno fez repetidas vezes a Brecht é agora feita contra o próprio Instituto, de modo que Adorno indica que o trabalho de Benjamin teria o marxismo como desvio tático para manter o vínculo institucional e, assim, garantir a própria sobrevivência material ameaçada. Não importa aqui que Benjamin recuse peremptoriamente essa inferência em sua resposta à carta de Adorno (cf. idem, p. 379). Importa que Adorno separa nitidamente, de um lado, o marxismo e suas exigências teóricas, e, de outro, “os mais argutos e frutíferos pensamentos” de Benjamin, a “sua própria, a boa, desabusada teoria especulativa”. É isto o que Adorno espera de Benjamin: “As Afinidades eletivas e o livro sobre o barroco são melhor marxismo do que o imposto sobre o vinho e a dedução da fantasmagoria a partir do behavior dos folhetinistas” (idem, p. 370).

Se Adorno está o tempo todo confrontando Benjamin com ele próprio, os textos da década de 20 com os produzidos nos anos 30, não é de estranhar que a resposta de Benjamin se socorra de seus próprios escritos e denuncie que quem mudou de posição não foi ele, mas Adorno: “Se o Sr. pensar retrospectivamente em outros de meus trabalhos, o Sr. encontrará lá que a crítica à atitude do filólogo é para mim uma antiga preocupação – e no mais íntimo idêntica à crítica ao mito. Ela exige, para falar na linguagem do trabalho das Afinidades eletivas, a produção dos teores de coisa, nos quais o teor de verdade será desfolhado historicamente. Eu compreendo que este aspecto da coisa tenha refluído para o Sr. Com isso, entretanto, refluem também algumas importantes interpretações” (idem, p. 381).

Teríamos agora de retornar à produção de Benjamin da década de 20 para conseguir dar seqüência ao debate. Mas já está perigosamente próximo o ano de 1940 e, com ele, a interrupção brutal do diálogo.



Notas



1. Não é relevante para os propósitos aqui perseguidos lembrar que Adorno, no período de 1934 a 1937 fez três curtas viagens a Paris, onde Benjamin residia (e não duas, como afirmou Habermas). Mas não custa fazê-lo: 4 a 9/10/1936; 18 a aproximadamente 22/03/ 1937; início de junho de 1937, a caminho de Nova York. Além disso, Adorno encontrouse rapidamente com Benjamin em Paris na noite de 11/12/1935 a caminho de Frankfurt. A última vez que Adorno e Benjamin se encontraram foi em San Remo, no final do ano de 1937. Registre-se também que, após o encontro em outubro de 1936, Adorno e Benjamin passam a se dirigir um ao outro pelo primeiro nome, embora permaneça o tratamento formal (“Sie”).



2. Embora fosse essa a pretensão de Adorno, que esperava que seu ensaio “Sobre o Jazz” (1937) contivesse já “algo de corretivo” frente ao ensaio de Benjamin “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (1936). Cf. Horkheimer, Gesammelte Schriften, vol. XV: Briefwechsel 1913-1936, Fischer, 1995, p. 500. Entretanto, esse mesmo ensaio ganha, ainda em outubro de 1936, “aditamentos” (os chamados “Oxforder Nachträge”, que só serão publicados em 1964) devido às críticas e sugestões de Walter Benjamin. São uma constante da correspondência de Adorno nesse período as “autocríticas”, o reconhecimento das “insuficiências” e “fraquezas” dos seus próprios textos, do seu caráter insatisfatório, e, muitas vezes, o reconhecimento também da justeza das críticas de Benjamin. Para nos restringirmos às principais publicações e as respectivas cartas, a lista dessas “autocríticas” poderia ser a seguinte: Kierkegaard, cartas 27, 33 e 39; “Versuch über Wagner”, carta 106; “O fetichismo na música e a regressão da audição”, carta 112.



3. Adorno se refere aqui aos esboços de 1929 conhecidos como “Pariser Passagen II”. Segundo o que se pode depreender das indicações do editor da correspondência, o conhecimento que Adorno tinha desses textos era não apenas parcial, mas também um conhecimento que advinha exclusivamente da leitura que deles fez Benjamin para Adorno em setembro ou outubro de 1929 (Cf. Adorno e Benjamin 3, pp. 25 e 152). Nesse sentido, ver também as notas dos editores ao escritos de Walter Benjamin ao texto em questão (cf. Benjamin 4, vol. II, p. 1349). De modo que as referências de Adorno aos fragmentos de 1929, segundo penso, devem ser tomadas mais como um sinal, como um emblema da mútua cooperação e do programa filosófico comum do que como fidelidade estrita à letra daquelas dezesseis páginas (cf. Benjamin 4, vol. II, 1044-1059). Nesse contexto, é importante notar que um dos elementos importantes envolvidos nas duras críticas de Adorno ao ensaio “Paris, capital do século XIX” era sem dúvida a pretensão de Benjamin de que o texto fosse a nova “Abertura” da nova versão das Passagens. Sobre isso, ver adiante.



4. Cf. Benjamin 4, vol. II, pp. 1237-1249. O texto pretendia ser a abertura da Obra das passagens e foi proposto para publicação na Zeitschrift für Sozialforschung, o que não ocorreu apesar do empenho de Adorno junto a Horkheimer para que isso ocorresse



5. Consulte-se a esse respeito a carta de 10/11/1938, Adorno e Benjamin 3, p. 365.



6. Ver ainda os desenvolvimentos presentes na carta de 2-4 e 5/8/1935, cf. Adorno e Benjamin 3, pp. 141-142.



7. Adorno repete aqui a autocrítica que já havia feito na carta de 5/6/1935, cf. idem, p. 123.



8. Ver a esse respeito as cartas 107 e 125, Horkheimer 7, vol. XV. Não é de maneira alguma desprezível na discussão que Horkheimer tenha escrito, em 1930, um ensaio sobre Ideologia e utopia.



9. As formulações originais de Adorno não foram, como de hábito, tornadas públicas nos seus Gesammelte Schriften. O Editor da correspondência de Horkheimer fornece em nota a passagem em questão: “O Jazz é mercadoria em sentido estrito: sua aptidão para o uso não se impõe de outra maneira na produção senão na figura de seu valor de troca, não apenas em contradição com a imediatidade da utilização, mas também do próprio processo de trabalho”. Em lugar de “seu valor de troca” foi colocado “sua vendabilidade”. Cf. id., pp. 562-563. Registre-se ainda a observação indignada do representante por excelência da ortodoxia marxista no Instituto, Henryk Grossmann, contra o ensaio (que Adorno publicou sob o pseudônimo de Hektor Rottweiler): “o ensaio de Rottweiler (que eu não conheço) parece-me um fracasso total. Um excesso de exemplificações técnicas desinteressantes por trás das quais não se encontra quase nenhuma análise sociológica. Que o Jazz não vem da África, mas é fabricado nos centros capitalistas, isto já sabíamos todos” (carta a Horkheimer de 1/10/1936, Horkheimer 7, p. 641).



10. Sobre isso, ver meu artigo “Lukács e o materialismo interdisciplinar”, em Lukács: um Galileu no século XX, Boitempo, 1996



11. Adorno menciona explicitamente a sua carta de 2-4 e 5/8/1935. Cf. Adorno e Benjamin 3, p. 366.



12. Ou, nos termos do problema perseguido por este artigo: que teoria o próprio Adorno está buscando nesses anos, à qual ele não consegue dar contornos nítidos, cujas formulações insuficientes não escapam ao seu crivo? E, neste contexto, vale lembrar aqui mais uma vez o caráter “projetivo” (no duplo sentido) que tinha adquirido a planejada Obra das passagens para Adorno e que explica, por exemplo, o seu apego a um texto que ele aparentemente conhecia de modo bastante precário, como parece ser o caso dos fragmentos conhecidos como “Pariser Passagen II” (Ver supra nota 3). De fato, o que temos até aqui é a formulação de determinados problemas que constituem o “programa comum” com Benjamin e, posteriormente, a recusa da solução peculiarmente materialista que o próprio Benjamin dará a esses problemas. Teremos de aguardar a obra de maturidade de Adorno para não apenas tentarmos apresentar a sua solução particular desses problemas como também para iluminar positivamente certos elementos da obra de juventude em que essas soluções já se mostravam em germe.



13. Na Dialética negativa, Adorno não apenas mantém a mesma posição como descreve a posição de Benjamin como resultado de uma “aceitação (por assim dizer, de visão de mundo [gleichsam weltanschaulich]) com olhos fechados do materialismo dialético”.



14. “A mediação decisiva, em que Adorno do contrário tanto insiste, permanece nele aberta. O caráter social da música de Wagner se deve a uma inadmissível abstração da fisiognomia individual de Wagner introduzida no primeiro capítulo em um universal social que se espelha na música de Wagner. A fisiognomia individual é transferida para o social, sem que, em contrapartida, o caráter social do fantasmagórico seja mostrado no comportamento social”. Zenck, Martin, “Phantasmagorie – Ausdruck – Extrem. Die Auseinandersetzung zwischen Adornos Musikdenken und Benjamins Kunsttheorie in den dreissiger Jahren”, em Kolleritsch, Otto (org.), Adorno und die Musik, Graz, 1979, pp. 209-210.





Referências Bibliográficas



1. ADORNO, Theodor W., Gesammelte Schriften, Frankfurt, Suhrkamp.



2. _______. Minima Moralia, São Paulo, Ática, 1992.



3. ADORNO, Theodor W. e BENJAMIN, Walter, Briefwechsel 1928-1940, Frankfurt, Suhrkamp, 1994.



4. BENJAMIN, Walter, Gesammelte Schriften, Frankfurt, Suhrkamp.



5. _______. “Paris, capital do século XIX” e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em: Obras escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1985, vol. I.



6. HABERMAS, Jürgen, Die Normalität einer Berliner Republik, Frankfurt, Suhrkamp, 1995.



7. HORKHEIMER, Max, Gesammelte Schriften, Frankfurt, Fischer.



8. PETAZZI, Carlo, Th. Wiesengrund Adorno. Linee di origine e sviluppo del pensiero, Roma, La Nuova Italia, 1979.





Publicado em Cadernos de Filosofia Alemã 3, PP. 45-59, 1997

(FONTE:http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/nobre_01.htm)