sábado, 4 de junho de 2011

Walter Benjamin E O Tempo

Eide Sandra Azevêdo Abreu 1



Para Rodrigo, Edna e Aguinaldo




Neste artigo, procuramos, através de textos de Walter Benjamin, escritos na década de 1930 - “Experiência e pobreza” (1987), “O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow”(1983), “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”(1983) e “Sobre alguns temas em Baudelaire”(1983) -, demonstrar o modo como, no seu pensamento, figura o tempo da grande indústria. Numa primeira parte, expomos alguns aspectos considerados pelo autor como próprios da condição dos homens modernos, trazendo à luz as questões levantadas nos textos selecionados. Num segundo momento, procuramos identificar o posicionamento adotado por ele frente a tais questões.



Dimensões do declínio da experiência

A perda da experiência e o fim da narrativa: solidão e esquecimento



Por entre a multiplicidade de temas que afloram nos textos de Walter Benjamin selecionados para, neste artigo, identificarmos o modo como o filósofo alemão enxergava a “era da grande indústria”, um problema se afirma com força: a circunstância de que a vivência “hostil e obcecante” (1983:30) dessa época conduziria ao declínio da experiência enquanto partilha coletiva de “uma memória e uma palavra comuns” (Gagnebin, 1987:9).

Esta perda da experiência constitui o tema central de “Experiência e pobreza” apresentando-se, também, para Benjamin, como uma das causas da raridade moderna da figura do narrador. Conforme diz o próprio autor,

Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências.

Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável. (1983:57).



Ao expor as condições que conduzem à substituição da narrativa por outras formas de comunicação, Walter Benjamin identifica certos elementos que, correlatos ao declínio da experiência, seriam característicos da existência dos homens modernos. Nesse sentido, pode ser proveitoso acompanhar com um certo vagar essa exposição, realizada em “O narrador”.

Na própria natureza da narrativa, existia, segundo o pensador, mesmo que de forma latente, uma dimensão utilitária, pois o narrador era um homem que dava conselhos, tecidos na substância de sua própria vida. Era um homem que dispunha de sabedoria, estando o seu desaparecimento intimamente relacionado com a morte da sabedoria em nosso meio. Ninguém teria mais conselhos a oferecer aos outros, e cada um quase sempre seria incapaz de narrar sua própria história, para que pudesse ouvir um aconselhamento que sugerisse uma continuidade para ela. Ter-se-ia mesmo perdido, segundo Benjamin, a capacidade de ouvir e transmitir histórias.

A retransmissão da história narrada pelo ouvinte constituiria condição essencial para a sobrevivência da narrativa. Ela disporia mesmo de qualidades que facilitariam sua conservação pela memória. Segundo diz o autor, a narrativa é destituída de análise psicológica - que seria própria do romance - e de explicações - das quais as informações seriam repletas -, circunstância que possibilita a quem ouve mergulhar o que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, transmiti-la de bom grado. Mas esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin (1983:62),

Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal.



Há, segundo afirma Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação” (1983:31). Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades. O berço do romance seria a solidão do indivíduo carente de ajuda, mas que não é capaz de narrar os seus assuntos para que possa ser aconselhado; não tem conselhos para receber, nem para oferecer. O leitor de romance, que é solitário “mais do que qualquer outro leitor” (1983:68), devora o assunto do que é lido numa busca de um calor que não sabe obter em sua própria existência. Ele busca na morte do personagem - mesmo que figurada, no final do romance - o sentido de uma vida, sentido este que não encontra no seu próprio existir. Nas palavras de Benjamin (1983:69),



... o romance não tem significado porque representa, talvez de maneira instrutiva, um destino estranho, mas porque esse destino estranho, graças à chama pela qual é devorado, nos transmite um calor que nunca podemos obter do nosso. O que arrasta o leitor para o romance é a esperança de aquecer sua vida enregelada numa morte que ele vivencia através da leitura.



Ao isolamento do indivíduo moderno, leitor de romances, corresponderia uma adequação ao mecanismo social, que é descrita por Benjamin com as palavras de Paul Valéry:

... o homem civilizado das grandes metrópoles retorna ao estado selvagem, isto é, a um estado de isolamento. O sentido de estar necessariamente em relação com os outros, a princípio continuamente reavivado pela necessidade, torna-se pouco a pouco obtuso, no funcionamento sem atritos do mecanismo social. Cada aperfeiçoamento desse mecanismo torna inúteis determinados hábitos, determinados modos de sentir (Benjamin, 1983: 43).



Do mesmo modo que o romance, grande distância da narrativa guarda a informação, que encontrou campo de florescimento no capitalismo avançado, onde passou a se constituir em importante instrumento de dominação da burguesia, mostrando-se “muito mais ameaçadora que o romance - o qual, de resto, leva, por sua vez, a uma crise” (1983: 60). Ao contrário da narrativa, que se despoja de explicações, pois dispõe de uma autoridade que dispensa a verificação imediata, a informação precisa provar sua veracidade e, com isto, impõe ao leitor explicações que a tornem verificável. Mas sua qualidade mais característica está em que seu mérito “reduz-se ao instante em que era nova. Vive apenas nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele, e, sem perda de tempo, comprometer-se com ele” (1983: 61-62). Não é guardada na memória, mas consumida instantaneamente. Do mesmo modo como surge, esvai-se no esquecimento.



A “vivência” e o ocaso da “memória involuntária”



Se, em “O narrador”, o indivíduo moderno surge, na figura do leitor de informações, como marcado pelo esquecimento, como um desmemoriado, em “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1983), Walter Benjamin apresenta uma interpretação diferente acerca do tema da memória nos tempos modernos. O que teria ocorrido não seria propriamente uma perda da memória, mas, sim, a predominância de uma determinada forma de lembrar.

O filósofo alemão se vale, em suas reflexões, de uma distinção realizada por Proust em A la recherche du temps perdu, entre “memória voluntária” e “memória involuntária”. A primeira seria aquela que estaria “à disposição da inteligência” (1983:30), sempre “pronta a responder ao apelo da atenção (1983:31), e estaria relacionada, na experiência proustiana, à “pobreza com que por muitos anos se oferecera à sua lembrança a cidade de Combray, onde, no entanto, transcorrera uma parte de sua infância” (1983: 31). Desta “memória voluntária”, ocasionada, por exemplo, pela fotografia, “se pode dizer que as informações que nos dá sobre o passado nada conservam dele” (1983:31). Segundo a leitura benjaminiana de Proust, o passado vivo nos seria trazido pela “memória involuntária”, provocada pelo contato com “qualquer objeto material (ou na sensação que tal objeto provoca em nós) que ignoramos qual possa ser. Encontrar ou não esse objeto antes de nossa morte depende unicamente do acaso”. (1983: 31).

A dependência do acaso para reevocar o passado em toda sua intensidade e, com isto, “alcançar uma imagem de si mesmo” constitui, segundo Benjamin, uma circunstância que “não é de modo algum natural” (1983: 31). As condições históricas modernas é que impedem que “os interesses interiores do homem” sejam “incorporados à sua experiência”, fazendo com que assumam um “caráter irremediavelmente privado” (1983: 31). “Onde há experiência, no sentido próprio do termo”, diz o autor, não há cisão entre a memória individual e a memória coletiva, visto que

...determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, com os do passado coletivo. Os cultos, com os seus cerimoniais, com as suas festas (sobre as quais talvez nunca se fale em Proust), realizavam continuamente a fusão entre esses dois materiais da memória. Provocavam a lembrança de épocas determinadas e continuavam como ocasião e pretexto dessas lembranças durante toda a vida. Lembrança voluntária e involuntária perdem assim sua exclusividade recíproca (Benjamin, 1983: 32).



Já no contexto moderno, em que ocorre uma “progressiva atrofia da experiência” (1983:31), o passado individual e o passado coletivo se apartam, adquirindo “exclusividade recíproca”. É esta cisão que se expressa no jornal impresso, cujo objetivo é “excluir rigorosamente os acontecimentos do contexto em que poderiam afetar a experiência do leitor” (1983: 31).

Além de separar o passado individual e o coletivo, as condições modernas de existência conduziriam, ainda, a uma ruptura da memória em “voluntária” e “involuntária”, com o predomínio da primeira sobre a segunda. A “memória voluntária” estaria ligada à esfera da “consciência desperta”, da qual dependeria - diz Benjamin baseando-se em Freud - a proteção contra os estímulos externos (chocs), sem a qual estes poderiam vir a causar efeitos traumáticos no indivíduo. Ampliando as circunstâncias em que o indivíduo se defronta com a necessidade de se proteger em relação aos chocs externos, o tempo da grande indústria teria reforçado o âmbito da consciência e da “memória voluntária”, restringindo as condições de florescimento da “memória involuntária”. A dificuldade moderna de resgate do passado, através desta última forma de lembrar, é explicada, nas palavras do próprio Benjamin, do seguinte modo:



A recepção dos chocs é facilitada por um treino do controle dos estímulos aos quais podem ser remetidos, em caso de necessidade, tanto o sonho como a lembrança. Mas normalmente, segundo a hipótese de Freud, este training diz respeito à consciência desperta, que tem sua sede em uma camada do córtex cerebral, “de tal modo queimado pela ação dos estímulos” que oferece as melhores condições para sua recepção. O fato de o choc ser captado e “aparado” assim pela consciência, daria ao acontecimento que o provoca o caráter de “vivência” em sentido estrito. E esterilizaria para a experiência poética esse acontecimento incorporando-o diretamente ao inventário da lembrança consciente (1983: 33).



Conforme vemos, o âmbito da memória involuntária é associado, aqui, à própria “experiência poética”. Mas esta passagem se mostra interessante ainda, porque, nela, nos deparamos com um conceito que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, contrapor-se-ia, na filosofia benjaminiana, ao de “experiência” (correspondente ao termo alemão Erfahrung), e seria apropriado à existência do indivíduo no “mundo capitalista moderno”: o conceito de “vivência” (Erlebnis). A “vivência”, segundo a comentadora, diria respeito à “experiência vivida, característica do indivíduo solitário” (1987:9). A passagem do próprio autor, acima citada, mostra que, para ele, a “vivência”, além de concernir à solidão do indivíduo moderno, relacionar-se-ia, ainda, à circunstância de este indivíduo se encontrar, em sua existência, continuamente defrontado com chocs que exigem a constância da “consciência desperta” capaz de apará-los, obstaculizando as possibilidades de emergência da “memória involuntária”. Segundo as palavras do filósofo alemão: “Quanto maior for a parte do choc em cada impressão isolada; quanto mais estímulos; quanto maior for o sucesso com que ela opere; e quanto menos eles penetrarem na experiência, tanto mais corresponderão ao conceito de ‘vivência’” (1983: 34).



A multidão e o choc amoroso



Através da obra poética de Baudelaire, Benjamin estabelece uma ligação entre a vivência marcada por chocs contínuos e o convívio com a multidão, no interior da qual, diz o pensador, baseando-se em Poe, o “hábito tranqüilo” cede lugar “a um toque maníaco” (1983:41). As “grandes massas” das cidades teriam tido uma presença tão forte no século XIX que se impuseram com autoridade como tema aos literatos desse século. Elas teriam estado mesmo, segundo Benjamin, no cerne do trabalho de Baudelaire, apesar de este não as ter tematizado de modo direto em suas poesias. Nas palavras do autor: “A massa é de tal modo intrínseca a Baudelaire que em vão se procura nele uma descrição da mesma. Como os seus objetos essenciais jamais aparecem, ou quase nunca, em forma de descrições. (...) A massa é o véu flutuante através do qual Baudelaire via Paris” (1983: 38).

No sentido de confirmar esta interpretação, Benjamin cita o poema A une passante, que julgamos proveitoso transcrever aqui, uma vez que, através dele, será levantado ainda um outro importante problema relacionado ao convívio na multidão:



La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil, douleur majesteuse,

Une femme passa, d'une main fastueuse

Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;



Agile et nobile, avec sa jambe de statue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,

Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,

La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.



Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté

Dont le regard m'a soudainement renaître,

Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?



Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!

Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais! (1983: 38)



Neste soneto, diz Benjamin, “Nenhum torneio de frase, nenhuma palavra lembra a multidão (...). Mas o processo apóia-se unicamente nela como a marcha do veleiro se baseia no vento (1983:38).

Por esta razão, pode o poema apresentar “o esquema de um choc”, trazendo à luz a “catástrofe” que afetou a natureza do sentimento do habitante da metrópole, “os estigmas que a vida numa grande cidade inflige ao amor”:

O êxtase do citadino é um amor não já à primeira vista, e sim à última. É uma despedida para sempre que, na poesia, coincide com o instante do enlevo. (...) O que contrai convulsivamente o corpo - crispé comme un extravagant é dito na poesia - não é a felicidade de quem é invadido pelo eros em todos os recantos do seu ser; mas antes um quê de perturbação sexual que pode surpreender o solitário. (Benjamin: 1983: 38-39).



Além de se ter engendrado na circunstância de que, na vida da grande cidade, o indivíduo se via permanentemente confrontado com a multidão, a experiência do choc teria se expandido, segundo o pensador alemão, em experiências ópticas e táteis propiciadas por uma série de inovações técnicas que, iniciadas pela invenção dos fósforos, “têm em comum o fato de substituir uma série complexa de operações por um gesto brusco” (1983: 43). Nessa série de invenções, estariam incluídos o telefone, a máquina fotográfica e o filme, no qual “a percepção intermitente afirma-se como princípio formal” (1983:43). Nesse aspecto, para Benjamin, residiria uma das rupturas efetivadas pelo cinema com relação à pintura: A pintura convida à contemplação; em sua presença as pessoas se entregam à associação de idéias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar” (1983: 25).



O “exercício” e o desejo no mundo da “vivência”



Valendo-se de O Capital, de Marx, Benjamin mostra como o ritmo a que é submetida a percepção do indivíduo na multidão, e em circunstâncias como a assistência de um filme, é o mesmo que preside o trabalho do operário na linha de montagem. Continuidade e ruptura se combinam, num processo em que “a peça a ser trabalhada entra no raio de ação do operário independentemente de sua vontade; e da mesma forma lhe é subtraída à revelia” (1983: 43). Dessa maneira, da mesma forma que como transeunte metropolitano, enquanto operário, o indivíduo se vê na condição de ter que aparar com sua consciência os chocs sucessivos impostos pelo meio exterior; neste caso, a entrada e a saída constantes da peça a ser trabalhada a cada momento.

Na existência do operário, a substituição, na época da grande indústria, da “experiência” pela “vivência” se revela ainda na circunstância de que o “exercício” cede lugar ao “aprendizado”. “Todo trabalho na máquina”, diz Marx, “exige do operário um aprendizado precoce” (citado em Benjamin, 1983:49). “Esse aprendizado”, diz Benjamin:

... é diferente do exercício. O exercício, único fator decisivo na profissão, ainda tinha vez na manufatura. Na base da manufatura, “todo ramo particular de produção vê na experiência a forma técnica que lhe é adequada, e aperfeiçoa-a lentamente”. (...) O operário não especializado é o mais profundamente degradado pelo aprendizado da máquina. O seu trabalho é impermeável à experiência. Nele o exercício não tem mais nenhum direito. (1983: 44).



As analogias parecem não cessar no ensaio benjaminiano. Elas se estabelecem, ainda, entre o operário e o jogador. Na “vanidade”, no “vazio”, no “fato de não poder terminar”, o autor vê uma relação entre o trabalho industrial e o jogo de azar, relação que se estabelece ainda através de outros elementos:

Também o seu gesto ( do operário), determinado pelo processo automático de trabalho, é representado no jogo que não acontece sem o gesto rápido de quem faz a aposta ou recolhe a carta. À partida no movimento da máquina corresponde o coup no jogo de azar. A intervenção do operário na máquina é sem relação com a precedente, exatamente porque constitui a sua reprodução exata. Toda e qualquer intervenção na máquina é tão hermeticamente separada da que a precedeu, como um coup no jogo de azar é distinto do coup imediatamente precedente. E a escravidão do assalariado a seu modo se equipara à do jogador. O trabalho de um e do outro é igualmente independente de todo conteúdo. (Benjamin, 1983: 45).



Através da analogia entre o trabalho fabril e o jogo, Benjamin traz à luz mais uma dimensão da “atrofia da experiência”: o desaparecimento do desejo. Está certo que o jogador pelo menos quer vencer, mas isto, para o autor,



... não pode ser definido como um desejo no sentido próprio da palavra. No íntimo, o que o absorve é talvez avidez, talvez uma sombria decisão. Em todo caso, encontra-se num estado de alma em que não pode valer-se da experiência. Ao contrário, o desejo pertence às ordens da experiência (1983: 46).



O desejo, ao formular-se, concentra em si três dimensões temporais, uma vez que, a fim de projetar o futuro no presente, obriga a remontar ao passado:

Na vida, quanto mais cedo se formula um desejo, tanto maiores são as suas perspectivas de realização. Quanto mais um desejo remonta no tempo, tanto mais se pode esperar a sua concretização. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência, é o que o preenche e articula. Por isso, o desejo realizado é a coroa destinada à experiência (Benjamin, 1983: 46).



Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”, antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que, como o jogador e o trabalhador assalariado, se dobram sob um eterno presente, pois têm que “recomeçar sempre de novo”, não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram” (Benjamin, 1983: 46).



O declínio da “aura”



Le Printemps adorable a perdu son odeur! ( 1983: 50)



Neste verso de Baudelaire, Benjamin vê uma admissão, por parte do poeta francês, da impossibilidade, no mundo moderno, de um tempo diferente da temporalidade vazia de conteúdo acima mencionada, tempo que se poderia concretizar através da memória involuntária, muitas vezes ocasionada pela sensação de um odor. Essa memória ainda guarda alguma relação com a experiência, que as condições modernas de existência substituem pela vivência, dificultando, conforme vimos , a emergência daquela forma de lembrar, promovendo a memória voluntária. Não existe consolo para o homem moderno, pois não o há “para quem já não pode fazer mais nenhuma experiência” (Benjamin, 1983: 50). Conforme o verso de Baudelaire, perdeu-se o odor de uma “primavera adorável”.

Conduzindo ao declínio da memória involuntária, a ruína da experiência leva ao mesmo tempo, à decadência da aura, uma vez que, conforme mostra Benjamin, os três termos se encontram estreitamente vinculados: “Definindo-se as representações radicais na mémoire involontaire tendentes a reunir-se em torno de um objeto sensível, como a aura desse objeto, a aura ao redor de um objeto sensível corresponde exatamente à experiência que se deposita como exercício num objeto de uso” (1983: 51).

Uma estreita relação entre memória involuntária e a aura dos objetos é estabelecida ainda quando Benjamin considera que as lembranças trazidas involuntariamente “são irrepetíveis e fogem à lembrança que tenta arquivá-las” (1983: 53; grifo nosso). Por esta razão, elas corresponderiam ao conceito de aura, tal como posto em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, isto é, “a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja” (1983: 9; grifos nossos).

Além de ser definida por Benjamin em termos de unicidade e distância, a aura é concernente, em seu pensamento, a uma percepção que atribui, ao inanimado e à natureza, uma capacidade humana que consiste na satisfação da expectativa contida em cada olhar: a de ser correspondido. Conforme explica o autor:

... está implícita no olhar a expectativa de ser correspondido por aquilo a que se oferece. Se tal expectativa ( que pode associar-se no pensamento tanto a um olhar intencional de atenção como a um olhar no sentido literal da palavra) é satisfeita, o olhar consegue na sua plenitude a experiência da aura. (...) A experiência da aura repousa portanto na transferência de uma forma de reação normal na sociedade humana para a relação do inanimado e da natureza com o homem. Quem é olhado ou se julga olhado levanta os olhos. Perceber a aura de uma coisa significa dotá-la da capacidade de olhar. Isto é confirmado pelas descobertas da mémoire involontaire (1983: 52-53).



Concebendo desta forma a “experiência da aura”, Benjamin pode responsabilizar pela sua decadência a memória, cujas imagens se baseiam na reprodução técnica, como as da fotografia. Para que esta possa ser feita, o olhar humano se dirige ao aparelho que, entretanto, não o retribui, “... o que na daguerreotipia devia ser sentido como desumano, diria mesmo mortal, era o olhar dirigido (além do mais, longamente) ao aparelho, enquanto este acolhe a imagem do homem sem retribuir-lhe um olhar” (1983: 52).

Com as técnicas de reprodução, a perda da aura não atinge apenas os objetos e as imagens da memória, afetando também as obras de arte. Se a obra de arte sempre foi, “por princípio, suscetível de reprodução”, o progresso das técnicas de reprodutibilidade nos séculos XIX e XX as elevou a tal nível que mudou visceralmente a percepção das obras. O original perde sua autoridade frente às cópias, ao se perder de vista a importância da autenticidade da obra de arte, isto é, da “unidade de sua presença no próprio local onde se encontra” (1983:7). Deste modo, “o que é atingido na obra de arte é a sua aura” (1983:8).

O declínio da aura, no contexto da reprodutibilidade técnica, atinge ainda a natureza, abrangendo também os próprios homens. Walter Benjamin afirma que, ao contrário do que ocorre com o ator teatral, que atua diante do público dotado de sua aura, o intérprete do filme dela é privado; tem sua atuação mediada por um aparelho, circunstância que o deixa constantemente submetido a uma experiência de teste: seja no momento em que são feitas as tomadas, seja quando é realizada a montagem, ou quando sua performance chega ao público que, não tendo seu julgamento “perturbado por qualquer contato pessoal com o intérprete” (1983:15), pode tomar a atitude de quem examina um teste. Nas palavras do autor,



... pela primeira vez, e em decorrência da obra do cinema, o homem deve agir com toda a sua personalidade viva, mas privado da aura. Pois sua aura depende de seu hic et nunc. Ela não sofre nenhuma reprodução. No teatro, a aura de um Macbeth é inseparável da aura do ator que desempenha esse papel tal como o sente o público vivo. A tomada no estúdio tem a capacidade de substituir o público pelo aparelho. A aura dos intérpretes desaparece necessariamente e, com ela, a das personagens que eles representam (1983: 16).



A posição de Benjamin: pesar e esperança



Com a exposição que fizemos, esperamos ter traçado um painel suficientemente amplo das questões que, nos textos selecionados, afloram da leitura benjaminiana da época da grande indústria. Conforme é possível notar, nesses textos, Walter Benjamin não adota uma postura de imparcialidade frente a tais questões: seu olhar não está isento de uma apreciação e de um posicionamento com relação àquilo que vê. É a uma tentativa de identificação deste posicionamento que nos voltamos agora.

Por entre as questões que anteriormente expusemos, perpassa, conforme já afirmamos, um mesmo problema: o declínio da experiência sofrido pelos sujeitos nas condições modernas de existência. Podemos notar, em várias passagens, um pesar, um sentimento de “perda dolorosa” (Gagnebin, 1987: 12) do filósofo alemão com relação a esta decadência. Este pesar se faz notar especialmente nas perguntas feitas no início de “Experiência e pobreza”, após uma referência às experiências que, “de modo benevolente ou ameaçador”, sempre foram antes transmitidas à juventude:

Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (Benjamin, 1987: 114).



O tom melancólico destas palavras, escritas em 1933, se repete em todo o ensaio “O narrador”, de 1936, sendo especialmente visível em passagens como aquela em que a influência da informação no destino histórico da narrativa é tida como “ameaçadora”. No capitalismo avançado, diz Benjamin, evidencia-se que uma nova forma de comunicação “... se antepõe à narrativa de um jeito não menos estranho, mas muito mais ameaçador do que o romance - ao qual, de resto, leva, por sua vez, a uma crise. Esta nova forma comunicação é a informação (1983: 60) (grifo nosso).

Correlato à questão do empobrecimento da experiência se mostra, conforme nota Jeanne Marie Gagnebin, fundamentando-se em uma carta do próprio Benjamin a Adorno, o problema da perda da aura (1987:11-12), amplamente discutido pelo filósofo alemão em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. Também neste ensaio é possível enxergar uma perspectiva pesarosa. As técnicas de reprodução, ao multiplicar as cópias dos objetos (prosaicos ou de arte), transformando o “evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas”, e conferindo-lhe “atualidade permanente”, conduzem “a um abalo da tradição, que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade” (1983: 8; grifo nosso). Aqueles que, como Abel Gance, teriam saudado o cinema “com entusiasmo”, teriam convidado a humanidade, “sem saber, a uma liqüidação geral” (1983: 8; grifo nosso).

Ao empobrecimento da experiência se vinculam, ainda, os múltiplos problemas levantados em “Sobre alguns temas em Baudelaire”. No tocante a eles, Walter Benjamin adota, em certas passagens, um ponto de vista extremamente negativo. Vejamos três exemplos. Ao se referir à modificação que a “vivência” no interior da multidão acarretou na natureza do sentimento amoroso do citadino, o autor o faz como a uma “catástrofe” (1983: 38). Quando compara Londres e Paris, dizendo que esta última cidade, ao contrário da primeira, ainda reservava espaço para o flâneur, Benjamin afirma que isto podia ocorrer porque então (primeira metade do século XIX) Paris conservava “alguns aspectos dos bons tempos antigos” (1983: 38; grifo nosso). No momento em que considera a substituição do “exercício” pelo “aprendizado” na existência do operário fabril não especializado, o autor a ela se refere como “degradação profunda” (1983: 44).

A posição do autor, entretanto, não se esgota nesta visão pesarosa. A par do ponto de vista negativo podemos notar, nos textos aqui abordados, um olhar esperançoso de Benjamin para o tempo da grande indústria. Em “Experiência e pobreza”, afirma que a pobreza de experiência se torna universal, fazendo surgir a barbárie, mas que esta barbárie deve ser entendida de maneira positiva:

Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de um tábula rasa. (...) (1987: 116).



Nesses grandes homens, entre os quais se encontrariam Einstein, os cubistas, Paul Klee, Brecht, Adolf Loos e Paul Scheerbart, Benjamin exalta, deixando ver sua própria perspectiva, a característica de “uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século”, o fato de terem se dirigido “ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época” (1987: 116).

Com relação às técnicas de reprodução da obra de arte, ao mesmo tempo que mereceram do pensador alemão a apreciação que já mencionamos, são vistas também de uma perspectiva bastante otimista. Benjamin acreditava que, uma vez passível de reprodução infinita, a obra de arte poderia deixar de ter apenas uma “função artística”, para fundar-se na prática política. Nas palavras do autor: “... desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de praxis: a política” (1983: 11).

Apostando no “progressismo” do público do cinema, que “não separa a crítica da fruição”, o autor julgava possível, através dessa nova forma de arte, uma mobilização das “massas” para “novas tarefas” (1983: 26), numa atitude de politização da arte que seria a resposta do comunismo à “estetização da política, tal como a pratica o fascismo” (1983: 28), trazendo a possibilidade de “renovação das estruturas sociais” (Arantes, 1983: XII) 2.

Combinando o pesar com a esperança e o otimismo, Walter Benjamin revela uma ambigüidade em sua apreciação dos problemas colocados aos homens pela vida da época da grande indústria. Isto não significa, entretanto, nenhum demérito para o pensador. Ele mesmo exaltou a ambivalência como algo grandioso em Fleurs du mal (1983: 49). Pensamos que , no tocante às questões apresentadas neste trabalho, poderíamos dirigir ao filósofo alemão as mesmas palavras com que descreveu a ambigüidade de Baudelaire com relação à multidão: “Ele torna-se o seu cúmplice e quase no mesmo instante dela se aparta. Mistura-se generosamente com ela para jogá-la de repente ao nada com um olhar de desprezo” (1983: 41).





Bibliografia



ARANTES, P. E. Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas - Vida e obra. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas - I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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Notas



1 - Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM)



2 - Esta postura otimista de Benjamin, segundo diz Paulo Arantes, teria sido objeto de severa crítica de Adorno, que teria chegado a qualificá-la como ingênua (1983:XII).





Publicado em Revista Diálogos, DHI/UEM, 02: 65-79,1998.

(FONTE:http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/eide.html)

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